Por Raphael Neves
Publicado originalmente no Blog do Raphael Neves
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"A lava do pensamento em fluxo", esse é o nome de uma exibição na Biblioteca Nacional em Frankfurt sobre a obra do filósofo alemão Jürgen Habermas, que completou 80 anos ontem. De fato, poucos pensadores contemporâneos podem ser comparados a um vulcão. Habermas é um deles não só pela extensa obra, mas também por uma postura aguerrida nos debates políticos e acadêmicos dos últimos 50 anos.
Desde o final da Segunda Guerra, em uma Alemanha dividida e ainda sob um longo processo de "desnazificação", Habermas emerge como uma figura pública, um "intelectual orgânico", que se encarrega de combater os adversários e obstáculos do que ele considera ser o caminho à maior democratização e emancipação social. Nesse sentido, ele é o antípoda de um certo pensamento decisionista que encontra seu melhor representante em Carl Schmitt.
Ao longo da segunda metade do século XX, Habermas também debateu com praticamente todos os intelectuais de peso. Na Alemanha, tomou parte na "Historikerstreit" (querela dos historiadores), sobre a interpretação histórica do nazismo. Nas discussões no campo da filosofia e da sociologia, tanto no resto da Europa, quanto nos Estados Unidos, sua lista de interlocutores inclui nomes como Derrida, Luhmann, Gadamer, Rawls, Taylor e por aí vai.
Ontem o jornal Süddeutsche publicou um excelente artigo de Charles Taylor, que faz um apanhado do que é mais ou menos o pensamento de Habermas. Além disso, o Frankfurter Allgemeiner Zeitung publicou também um artigo interessante de caráter mais biográfico, e o próprio Instituto de Pesquisa Social (a tal "Escola de Frankfurt") editou uma publicação para celebrar o aniversário.
É muito difícil resumir as várias facetas da teoria habermasiana em tão pouco espaço, como atesta Taylor. Mas, baseado um pouco no artigo publicado no Süddeutsche, vou tentar fazer um breve esboço aqui.
Em primeiro lugar, Habermas diferencia-se de uma tradição iniciada por Platão e Aristóteles e que busca responder questões de ordem moral a partir de uma visão da natureza humana. Isso torna-se problemático à medida que nos damos conta de que explicações baseadas em uma noção de natureza humana adotam sempre uma perspectiva metafísica. Em outras palavras, quando nos questionamos se uma lei é justa ou não, apelar à ideia de que os homens são, por exemplo, bons e suas ações boas (e, portanto, as leis feitas por eles são justas) não passa de uma generalização muito subjetiva. Como é possível então fornecer uma explicação ou um critério de validade mais objetivo?
Habermas tenta responder essa pergunta a partir de uma ideia de racionalidade baseada em processos dialógicos. A ideia de procedimento é emprestada de Kant. Pense, por exemplo, no tipo de ética implícita nos "Dez Mandamentos". Há duas tábuas com um conteúdo pré-determinado, dado, o qual devemos obedecer. Kant, ao contrário, formula um "procedimento" que não pretende fornecer, de antemão, nenhum conteúdo: "age somente segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal". Ou seja, ao agir devemos nos guiar por uma "lei" que possa ser também escolhida por todos.
Habermas modifica esse imperativo a partir dos estudos no campo da linguagem e o reformula em termos de um procedimento discursivo. A fim de saber quais normas são aceitáveis, precisamos seguir um procedimento segundo o qual serão válidas apenas aquelas normas cujas justificativas (isto é, as "razões" pelas quais devemos obedecer) puderem ser aceitas por todos os concernidos, ou seja, todos os afetados pelas normas.
A essa mudança de paradigma no campo da filosofia corresponde também uma mudança no campo da cultura política. Como afirma Taylor, isso ocorre através de uma "Renascença do Diálogo". Ainda segundo ele: "O feminismo, o multiculturalismo, o movimento gay e, não menos importante, os conflitos sobre identidade e reconhecimento mostram como concepções tradicionais de sociedade e política estão baseadas na exclusão tácita de minorias". Partindo desse diagnóstico, a teoria de Habermas busca oferecer uma maior abertura e inclusão de diferentes concepções de vida boa, visões de mundo etc. Em resumo, como as normas estão abertas àquele procedimento de justificação a partir da deliberação, é possível em tese levar em conta as diferenças. Algo que seria impossível caso estivéssemos presos ainda a uma concepção específica e unívoca de natureza humana.
Apesar de ambicioso, o projeto habermasiano é hoje um grande plano executado por uma imensa "força-tarefa" envolvendo grupos de pesquisa em todo o mundo, abrangendo áreas que vão da sociologia à política, passando pelo direito. Talvez não vejamos mais surgirem figuras com a mesma dimensão e importância de Habermas por aí. Segundo a professora Nancy Fraser, aqui da New School, a obra de Habermas é uma espécie de "one-man show". Daqui por diante teremos sim diversos grupos e coletividades de intelectuais dando continuidade a não uma, mas várias teorias críticas.
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