“A pessoa que fuma sabe que o cigarro vai fazer mal, mas continua assim mesmo. Depois, adoece e mesmo assim continua fumando. Assim, é uma pessoa sem Deus. Sabe que Ele está ali, mas não o procura”.
José Serra em discurso proferido durante o 28º Congresso Internacional de Missões.
Sinceramente, custei a acreditar que José Serra tivesse de fato dado tal declaração. Não me assustaria se ela tivesse partido de uma Sara Palin ou de um George Bush. Ou então, em nossa política nativa, figuras exóticas como Heloísa Helena, Marina Silva, Marcelo Crivella ou qualquer outro político que não conheça a barreira entre religião e Estado (laico), entre políticas públicas e liberdade individual, eu acreditaria, mas partindo de José Serra, ex-presidente da UNE, ex-ministro da Saúde, cair nesse discurso infantil a fim de coletar votos entre os segmentos ligados a um fundamentalismo abjeto, sinceramente me causou certo espanto.
Até onde um homem pode chegar na ânsia pelo poder? Jogar na lata do lixo a própria biografia?
E mais, José Serra disse isso no 1° de maio, o ex-governador paulista preferiu o refugio religioso a comemorar o Dia dos Trabalhadores, num evento para o qual o governo de Santa Catarina e a Prefeitura de Camboriu, ambos administrados por correligionários de Serra, destinaram R$ 540 mil para a sua realização.
Lembrei-me dum ótimo artigo da Folha de São Paulo, assinado por João Pereira Coutinho e publicado em agosto de 2006. Eis o artigo:
A guerra acabou
George Steiner, um dos últimos casos de cultura e civilidade que interessa ler com atenção, escreveu recentemente um breve ensaio. Sobre a idéia da Europa, intitulado "A Idéia da Europa". Ambição estimável: mostrar como a Europa possui uma unidade cultural e até espiritual que a distingue dos outros cantos do globo. Para Steiner, a Europa, a sua Europa (que, de certa forma, é minha também), surge como herança maior de Atenas ou Jerusalém, ou seja, como herança maior do pensamento racional e das grandes teologias judaico-cristãs. É igualmente um espaço que é possível calcorrear a pé, permitindo um confronto permanente com praças ou pracetas, ruas ou avenidas, que transportam no nome um pedaço de história ou memória. Como se houvesse em cada esquina a sombra inapagável de um passado de mortos.
Mas a Europa é também a Europa dos "cafés": ao contrário do "pub" inglês ou do bar americano, os cafés da Europa não são apenas locais utilitários de bebida ou refeição. São espaços de encontro, romance, discussão ou criação. Espaços de fumo e bebida. Vadiagem, malandragem. E em cada café da Europa existe também a presença invisível dos que o habitaram: Kraus em Viena; Pessoa em Lisboa, Sartre em Paris; e porque a ficção se mistura tantas vezes com a realidade, os gangsters de Isaac Babel nos cafés de Odessa. Porque a Europa dos cafés estende-se da Lisboa de Pessoa à Odessa de Babel.
Leio o pequeno livro de Steiner e não posso deixar de sentir uma certa nostalgia. A descrição do autor talvez seja útil para entender a Europa. Mas que Europa? A Europa do passado? Sem dúvida. Mas sobre a Europa do presente, o sábio George está equivocado. Não apenas pelo declínio cultural que a Europa conheceu depois da Segunda Guerra Mundial, quando o "espírito do tempo" emigrou para Nova York, e não mais para Londres ou Paris. Mas porque na Europa, e sobretudo na Europa dos cafés, dificilmente encontramos o ambiente físico e espiritual que Steiner retrata. A vida intelectual é hoje essencialmente solitária e privada, onde os escribas vão cultivando os seus feudos, e os seus ódios, sob a luz triste da existência suburbana. E sobre beber ou fumar, a maioria dos cafés do continente já foi abolindo o último vício, esperando-se que se ocupe agora do primeiro. Os cafés da Europa serão, a prazo, jardins infantis.
O "espírito do tempo" não emigrou apenas para outras paragens. Ele foi destruindo uma cultura de adultos, entregando as rédeas do mundo à ideologia patética da juventude. Não admira, por isso, que o último passo tenha sido dado nos últimos dias: uma empresa irlandesa publicou um anúncio de emprego. E estabeleceu: fumantes escusam de se candidatar. De acordo com o diretor da empresa, pessoas que fumam não revelam a inteligência necessária para trabalhar no covil irlandês. E cheiram mal. E são insuportáveis para terceiros.
O gesto indignou algumas consciências políticas e uma eurodeputada britânica resolveu levar o caso à Comissão Européia, que pastoreia e vigia a vida do continente. Será legítimo excluir do trabalho alguém que fuma? A Comissão respondeu afirmativamente: a Europa proíbe a discriminação no emprego com base na raça ou etnia; na deficiência; na idade; na orientação sexual; na religião ou nas crenças. Mas não necessariamente quando uma empresa faz juízos objetivos sobre escolhas individuais. O problema já não está na mera possibilidade de proteger os não-fumantes do vício de terceiros, disponibilizando espaço próprio para os últimos. O problema está, tão só, na mera existência dos viciosos, que devem ser erradicados da paisagem comum.
Por favor, escusam de me enviar mensagens indignadas. A guerra acabou e, de certa forma, vocês, fanáticos, venceram. A luta contra o tabaco nunca foi uma luta pela saúde dos "passivos" (o que seria compreensível). Foi simplesmente uma luta contra a liberdade individual em nome de uma utopia sanitária: os fanáticos não desejam apenas que o fumo não os perturbe; desejam que a mera existência de um fumante também não. É a intolerância levada ao extremo e servida numa retórica simpática e humanista. E agora com cobertura legal.
A prazo, essa luta não irá ficar apenas pelo fumo: pessoas gordas; pessoas que bebem; pessoas que desenvolvem atividades sexuais promíscuas; pessoas inestéticas; pessoas que não se adaptam à cartilha higiênica das patrulhas serão enxotadas, como ratazanas da espécie, de qualquer presença visível numa sociedade crescentemente dominada pelo culto da saúde. Seremos como as tribos primitivas, elevando o corpo a um novo deus. Caprichosos e cruéis.
George Steiner, no mesmo ensaio, afirma que a Europa só não morrerá se souber preservar as suas "autonomias sociais": línguas, tradições, liberdades, excentricidades. E, citando o célebre dito de Aby Warburg, relembra que "Deus está nos detalhes".
Pobre George. Pobres de nós. De que vale o otimismo de um sábio quando os bárbaros são recebidos como heróis?
Um comentário:
Sinceramente, não conheço George Steiner, porém o seu comentário sobre como se comporta a Europa de hoje é uma verdadeira mostra da realidade em que se encontram quase todas as Nações do mundo: a rejeição à liberdade de escolha de um cidadão usar sua existência desse ou daquele modo; seguir ou não as linhas gerais de uma "nova sociedade" pós-guerra, a meu ver não equilibrada, mas sem saber qual a mudança necessária para que tudo volte a ter a normalidade aceitável dentro de uma sociedade que atingiu um patamar tecnológico de respeito, mas deixou de investigar o seu interior, de se voltar para si mesma e abjurar a esses detalhes vãos de não dar emprego a quem fuma, a quem ultrapassou a casa dos trinta anos, a quem não tem as qualificações necessárias para exercer certas exigências exacerbadas. Antes das mudanças feitas, deveriam ter preparado os cidadãos para esse novo confronto. Um exemplo: a China sempre repudiou os nascituros do sexo feminino. Eliminavam de todas as maneiras as crianças feminís. O que acontece atualmente na China? Não há moças para casamentos, para constituir família e, pois, para atender à demanda de um numero imenso de homens. De que valeu a tal política de que só os homens serviam, num país altamente agrícola à época dessas medidas?
O mundo caminha para o caos, meu amigo. O planeta está gritando que está cansado por tantos desmandos, pelo avanço tecnológico e pelo poder aquisitivo superlativo da humanidade que exige mais e mais bens de consumo, mormente veículos poluidores. Aumentam os lixões, por causa do aumento populacional, sem uma política própria de enfrentamento a esse crescimento, mas, sobretudo, pelas divisões de classes e suas escolhas de vida.
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