Por Flávio Aguiar, na Carta Maior
Nossa, não estava no mapa o que deu de metáfora cediça na mídia brasileira cartorial depois da aprovação das sanções de Hillary Clinton (disfarçadas como do Conselho de Segurança da ONU) contra o Irã e contra o acordo firmado por este país com a Turquia e o Brasil.
Dois exemplos:
1) Virando a metáfora do presidente Lula contra ele, saiu que o Brasil se aproximar do Irã e manter uma “política terceiro-mundista” é o último charme ou armadilha do nosso “complexo de vira-lata”. A metáfora não vai muito além de suas pernas, porque não as tem. Falar de “terceiro mundo” hoje, como fonte de inspiração política, é de um anacronismo tão grande quanto falar de um “primeiro mundo”. A não ser no sentido de que o ex-primeiro (EUA e Europa) estão criando o “seu” terceiro. Aquele, pela miserabilização – que o governo Obama tenta corretamente conter – de enormes parcelas de sua população. Esta, pela adoção, pelo conservador Consenso de Bruxelas, manu econômica, das mais conservadoras receitas do Consenso do Washington, via intervenção do FMI na zona do euro.
2) Citando pela não-sei-quanta-centésima-vez o infeliz episódio do nosso querido e grande poeta Castro Alves, saiu-se gente a dizer que o voto contrário do Brasil às sanções sobre o Irã na ONU foi “um tiro no pé”. Me desculpe o autor de mau gosto da metáfora sem gosto: só se o tiro foi no pé de dona Hillary. Mas guardemos as proporções: “tiro” é demais. Digamos que o voto brasileiro – junto com o da Turquia – no Conselho de Segurança foi uma “pedra no sapato” da política que tenta segurar o lobby judeu a seu favor nos EUA diante de uma eleição a perigo no fim do ano, e aplacar os falcões norte-americanos que herdou de Condoleeza Rice no Depto. de Estado, Pentágono, CIA, etc., além dos que promoveu.
“Pedra no sapato”? Sim, porque a Turquia é o aliado na OTAN mais a leste desse protetorado norte-americano que se chama Europa. Através de uma ponte, ela extrapola a própria Europa, e vai em direção aos contenciosos da Ásia. Sem Turquia, os norte-americanos ficam sem ponte para o vasto continente onde têm também vastos interesses – entre eles o de cercar a Rússia. E sem o Brasil, os Estados Unidos não vão a lugar nenhum (a não ser às suas bases na Colômbia) na América do Sul. Bom, mas for o Brasil da aliança tuca-dema, aí os Estados Unidos irão longe.
O vazio do discurso dos que tentam desqualificar a visão da diplomacia brasileira como “imatura” (!!!???) ficou mais patente depois da contradição entre uma afirmativa de algum funcionário do Departamento de Estado (apresentada nas manchetes como “Os Estados Unidos reprovam"...) de que os Estados Unidos viriam como inaceitável que o Brasil vendesse etanol ao Irã, e a asserção russa de que as tais de sanções não impediriam a venda de mísseis S-300, fundamentais para que o país defenda suas instalações nucleares, ao Irã. Sem falar que os maiores parceiros comerciais do Irã, além da Rússia e da China, estão na União Européia.
Como entender essa cegueira parcial para o mundo, além, evidentemente, da falta de uma consulta bibliográfica adequada sobre a diplomacia brasileira e sua história?
É que aos arautos da nossa “élite” sequiosa de benesses, benefícios e subsídios para os seus supérfluos, assalta um “complexo de carcará”.
O carcará, ave do nosso sertão, é um parente distante dos falcões. Ah, os falcões, esses velozes e mortais caçadores das aristocracias d’Europa... Não os temos. Mas temos os carcarás. São aves pequenas, que vivem de atacar insetos, roedores, preás, e filhotes pequenos de animais grandes, como porcos, bovinos, etc. São a metáfora perfeita para os nossos roedores na política internacional. Inclusive porque o carcará também é um devorador de carniça, e vive na esteira dos urubus.
É mais ou menos isso que esses arautos da subserviência nos desejam, quer dizer, para as “élites” que defendam. O que nos cabe nesse mundo “mal dividido” é comer os sobejos da potência que domina o nosso hemisfério e o mundo. A gente podia chamar isso também de “complexo do beija-mão”. Beija-mão da potência, claro, porque por aqui, o que essa “élite” gosta mesmo é do “beija-anel”, porque a mão já perdeu faz tempo.
O mundo mudou. O carcará já foi um ícone da esquerda brasileira. “Carcará, pega, mata e come! Não vai morrer de fome!” E aí vinha algo assim como que ele ataca os borregos e segura “no umbigo até matá”. E que tinha “mais corage do que home”. A canção era bonita, a metáfora nem tanto. Até porque, tudo bem pesado, naquela época os carcarás eram “eles” e os borregos éramos nós.
Mas enfim, a metáfora hoje se ajusta a essa crosta da sociedade brasileira, mídia conservadora e seus arautos incluídos, que pensa que nossa inserção no mundo deva ser a de ajudar a explorar mais os já explorados e oprimidos, os países menores nossos vizinhos, aliados a uma subserviência mundial que garanta a idéia de que política, internamente, é coisa para quem preza apenas a ascendência européia da nossa cultura, apesar de quantos pés na cozinha, na oca e em outros lugares assumamos ter.
Finalmente, só me resta pedir desculpas ao carcará, ave nobre do nosso sertão, que ajuda a manter o equilíbrio do nosso biossistema com a galhardia dos resistentes, por tê-lo usado como metáfora para descrever mentalidades tão avessas à análise reflexiva quanto chegadas ao amor pelos privilégios.
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