"Um
dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu,
não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro
vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me
incomodei.". Mas "no quarto dia vieram e me levaram. Já
não havia ninguém para reclamar".
(Martin Niemoler)
Ao ler a famosa
frase do pastor luterano nascido na Alemanha e testemunha dos
horrores do nazismo, simplesmente não dá para ficarmos calados diante da onda de ódio, preconceito e intolerância que
toma conta de alguns setores ditos “politizados” do
Brasil. Escolhermos nos calar nesse instante, significa
pecarmos por omissão diante do monstro que aos poucos vai sendo
fomentado por uma elite que se recusa a repartir até migalhas,
quanto mais construir uma sociedade minimamente civilizada e que faça
jus, ao menos, de ser chamada de democrática.
Estou
lendo com muita atenção a obra recém lançada do filósofo
francês Jacques Rancière “Ódio
à Democracia” e é incrível perceber o quanto a conquista de
direitos por minorias – entendamos por minoria os oprimidos
política, cultural e economicamente – traz consigo a
intolerância daqueles que antes detinham determinados privilégios.
Temos vivido isso nessas
primeiras semanas pós eleições. Na verdade uma certa onda de
intolerância e preconceito já nos ronda bem antes da campanha desse
ano. Quem não se lembra da frase recheada de
preconceitos jactada por Jorge Bornhausen em 2005? Naquela
oportunidade o então senador pelo PFL de Santa Catarina expôs o
sentimento de muitos dos seus confrades ao se referir ao PT, seus
membros e simpatizante como “raça” – “Vamos
acabar com essa raça. Vamos nos ver livres dessa raça por pelo
menos 30 anos”.
No entanto, após
promulgado o resultado da última eleição presidencial em que
sagrou-se vencedora a presidenta candidata a reeleição, todo e
qualquer pudor foi prontamente deixado de lado e foram
retirados do armário esqueletos de intolerância, ódio e
preconceito. O fascismo deixou de ser apenas flertado por
parte de nossa “elite” e foi assumido sem nenhum rubor. Os
militares chamados de volta e o Brasil, do dia para a noite, se
converteu numa república bolivariana, comunista, soviética...
Nesse contexto pobres,
negros, mulheres, militantes dos mais diversos movimentos sociais,
sindicalistas, homossexuais, defensores dos direitos humanos, mas
sobretudo nordestinos (esses nos últimos dias ganharam a companhia
de cariocas e mineiros) passaram a ser tratados como escória da
humanidade e sujeitos incapazes de participar de forma plena da
sociedade, tendo que ser constante e permanentemente tutelados. Todo
esse “povo” que faz parte da sociedade brasileira, na visão
elitista forma um grupo de preguiçosos, indolentes, inaptos, idiotas
que se vendem em troca dos parcos benefícios oriundos dos programas
sociais financiados pelos exorbitantes impostos pagos por quem
realmente trabalha, mas é massacrado diuturnamente pela presença do
Estado aparelhado pela camorra que dele se apropriou há 12 anos.
Portanto, nada mais justificável do que, por exemplo, chamar
nordestinos de antas, mineiros de burros e ao mesmo tempo clamar para
que uma intervenção militar livre o Brasil desse governo corrupto
bolivariano, comunista, soviético...
É essa visão
preconceituosa, divorciada de qualquer nexo com a realidade, difusora
do discurso do ódio, da intolerância e do autoritarismo que somos
obrigados a combater se quisermos de fato avançar na construção de
uma sociedade mais justa, mais igual, mais democrática. Se quisermos
de fato sairmos do atual estágio de democracia meramente formal para
alcançarmos aquilo que o cientista político canadense C. B. Macpherson chama de democracia substancial.
Democracia substancial é justamente aquela cujos poderes
transpassam a esfera das instituições estatais e torna a sociedade
civil organizada sua co-protagonista. Infelizmente não conseguiremos
chegar a tanto enquanto parte de nossa sociedade preferir
viver na Idade das Trevas ao invés do século XXI.
Ontem eu estava lendo um
artigo dedicado a contar um pouco da história do Partido Operário
Social Democrata da Suécia e seus ininterruptos e incríveis 40 anos
no poder. Não dá pra comparar Suécia com Brasil e menos ainda o
sistema parlamentarista dos escandinavos com nosso presidencialismo
torto. Mas o que achei interessante é que em muitos momentos houve
na Suécia um consenso entre governo e oposição em torno de temas
que mudariam a face da sociedade sueca. Como pensar em algo assim no
Brasil quando o partido que perde uma eleição sequer reconhece sua
derrota? Pior, acaba com isso incitando (diretamente ou não) o clima
de nós contra eles, de Brasil dividido por conta do mapa eleitoral.
Pena, ainda estamos
anos-luz de sermos uma sociedade minimamente civilizada. Ainda falta
muito para termos uma sociedade na qual haja uma defesa intransigente
das liberdades individuais e radical dos
direitos coletivos.