O grande
legado da chamada “era Lula” não é o “mensalão”. Nem este é o maior escândalo
da história recente do país. Se a compra de votos para a reeleição do
Presidente Fernando Henrique Cardoso - que certamente ocorreu à revelia do
beneficiário - tivesse a mesma cobertura insistente da mídia e se os processos
investigativos tivessem a mesma profundidade das investigações do chamado
“mensalão”, a eleição que sucedeu aqueles eventos poderia ter sido inclusive
anulada e um mar de cassações de mandatos e de punições pela Justiça poderia
ter ilustrado, ali sim, o maior escândalo institucional da República.
Tratava-se da nulidade de um mandato presidencial, cuja viabilidade teria sido
literalmente comprada.
Assim como o
impedimento do Presidente Collor foi feito dentro do Estado Democrático de
Direito, o processo do mensalão” também o foi. Isso é bom para o país e bom
para a democracia. A compra de votos para a reeleição, porém, foi diluída em
termos de procedimento penal e logo arquivada também politicamente. Naquela
oportunidade a política não foi judicializada, consequentemente, não foi
“midiatizada” e, como sabemos, na “sociedade espetáculo” de hoje o que não está
na mídia não está na vida política.
O fato de
que o Estado de Direito funcionou em todos estes casos não quer dizer que isso
ocorreu de maneira uniforme. O tratamento não foi igual para todos os
envolvidos. As ações e providências políticas no Estado de Direito refletem no
espaço midiático de forma diversa e não cumprem finalidades meramente informativas.
São “mercadorias informativas” cujo objeto não é promover necessariamente
decisões judiciais perfeitas e justas, apenas passam o “olhar” dos detentores
do poder de informar. A Justiça, como a renda, é sempre distribuída
desigualmente, porque sobre a distribuição da Justiça e a distribuição de renda
incidem fatores externos às suas normas de repartição ideal, que se originam da
força política e econômica dos grupos envolvidos nos conflitos políticos.
O Estado
Democrático de Direito é o melhor não porque ele é o Estado perfeitamente
justo. O Estado de Direito é o desejável porque ele oferece melhores
possibilidades de preservar direitos e acolher demandas e porque ele é a melhor
possibilidade para preservar os direitos humanos e as liberdades públicas. O
processamento dos réus do “mensalão” deve ser considerado, assim, como uma
normalidade do Estado Democrático de Direito, mas o que não pode ser
considerado como aceitável é o massacre midiático que já condenou os réus e
condenou o PT e os petistas de forma indeterminada, antes do pronunciamento do
STF. E isso não foi feito de maneira ingênua.
Vejamos
porque isto ocorre. O grande legado da “era Lula” foi, além do início da
mudança do modelo econômico anterior, o início de uma verdadeira “revolução
democrática” no país, o que fez o seu governo ser tão combatido pela direita
neoliberal, cujas posições refletem na maior parte da grande mídia, que é
plenamente posicionada nos conflitos políticos e econômicos do país.
Mas o que é
esta “revolução democrática”? Suponhamos que a democracia seja uma grande mesa
onde todos, abrigados no princípio da igualdade formal, sentam-se para
viabilizar seus interesses e disputar algo da renda socialmente gerada pelo
trabalho social. Nesta grande mesa (resultado aqui no Brasil da Constituição
Democrática de 88), entre a promulgação da Constituição e os governos FHC,
todos sentavam nos lugares reservados por aquele ordenamento. Obviamente,
porém, alguns sentavam em bancos mais elevados, viam toda mesa, observavam o
que estava em cima dela para adquirir, para comprar, para “pegar” pela pressão
ou pelo Direito. Conversavam entre si de maneira cordata, transitavam
“democraticamente” os seus interesses, tendo na cabeceira da grande mesa os
Presidentes eleitos.
Outros
estavam sentados em bancos tão baixos que não viam o Presidente, não
participavam do diálogo, não sabiam o que estava em cima da mesa. Não tinham
sequer a quem se reportar em termos de exercício do seu poder de pressão.
Estavam só formalmente na mesa democrática, sem poder e sem escuta. O que Lula
promoveu foi apenas a correção da altura dos bancos, que agora permite aos
trabalhadores, sindicalistas ou não, com as suas grandezas e defeitos, os
“sem-terra” e “sem-teto”, os que não contavam nas políticas de Estado, os excluídos
que não podiam ascender na vida (inclusive os grupos empresariais e setores
médios que não tinham influência nas decisões do Planalto) verem o que sempre
esteve em cima da mesa.
O simples
fato de ver e dialogar permitiu que estes contingentes sociais passassem a
disputar a posse de bens e uma melhor renda. A democracia em abstrato tornou-se
um jogo mais concreto. Os governos Lula, assim, levaram a uma nova condição o
princípio da igualdade formal, que começa pelo direito das pessoas terem a sua
reivindicações apreciadas pelo poder, impulsionadas pelo conhecimento do que
pode ser repartido e do que está “em cima” da mesa da democracia.
Isso foi
demais. Significou e significa um bloqueio à ruína neoliberal que perpassa o
mundo e, embora tenha sido um projeto também negociado com o capital
financeiro, trouxe para a política, para o desejo de mudar, para a luta por
melhorias concretas, milhões e milhões de plebeus que estavam fora do jogo
democrático. Estes passaram a comer, vestir, estudar e reduzir os privilégios
da concentração de renda.
A
“plebeização” da democracia elitista que vigorava no Brasil é o fator mais
importante do ódio à “era Lula” e do superfaturamento político do “mensalão”.
Este é o motivo do superfaturamento, que pressiona o STF para que este não faça
um julgamento segundo as provas, mas faça-o a partir de juízo político da “era
Lula”, que cometeu o sacrilégio de “sujar” com os pobres a democracia das
elites.
Para não
entrar em debates mais sofisticados sobre Teoria Econômica, situo como premissa
- a partir de uma ótica que pretende ser de grande parte da esquerda
democrático-socialista - o confronto político sobre os rumos da sociedade
brasileira, após a primeira eleição do Presidente Lula: de um lado, tendo como
centro aglutinador os dois governos do Presidente Fernando Henrique, um bloco
político e social defensor de um forte regime de privatizações, alinhamento
pleno com os EEUU em termos de política global -inclusive em relação ao combate
às experiências de esquerda na América Latina- com a aceitação da sociedade dos
“três terços” (um terço plenamente incluído, um terço razoavelmente incluído e
um terço precarizado, miserável ou totalmente fora da sociedade formal, alvo de
políticas compensatórias), experiência mais próxima do projeto de
sócio-econômico dos padrões neoliberais, que hoje infernizam a Europa; de outro
lado, tendo como centro aglutinador os dois governos Lula, um bloco político e
social que “brecou” o regime de privatizações, reconstruiu as agências
financeiras do Estado (como Bndes, Banco do Brasil e Caixa Federal, para
financiar o desenvolvimento), estabeleceu múltiplas relações em escala mundial
-libertando o país da tutela americana na política externa- protegeu as
experiência de esquerda na América Latina e desenvolveu políticas públicas de
combate à pobreza, programas de inclusão social e educacional amplos, tirando
40 milhões de brasileiros da miséria, com pretensões mais próximas das
experiências social-democratas, adaptadas às condições latino-americanas.
Estes dois
grandes blocos têm no seu entorno fragmentos de formações políticas que ora se
adaptam a um dos polos, combatem-se, ou fazem alianças pontuais sem nenhuma
afinidade ideológica. Como também fazem alianças as direitas liberais com a
extrema esquerda e o centro, ora com a esquerda, ora com a direita. Mais
frequentemente estas alianças foram feitas para paralisar iniciativas dos
governos Lula, que sobrevivem até o presente, como as políticas de valorização
do salário-mínimo, as políticas de implementação do Mercosul, a política
externa quando valoriza os governos progressistas latino-americanas e as
políticas, em geral, de combate às desigualdades sociais e regionais.
Atualmente
perpassa, na maioria da mídia tradicional, uma forte campanha pela condenação
dos réus do “mensalão”, apresentando-os como quadrilheiros da impureza
política. A mídia seleciona imagens e produz textos que já adiantam uma
condenação que o Poder Judiciário terá obrigação de obedecer, pois “este é o
maior escândalo de corrupção da história do país”, o que certamente começou com
o Partido dos Trabalhadores e seus aliados no governo.
Os réus do
“mensalão” e o PT já estão condenados. Já foram condenados independentemente do
processo judicial, que muito pouco acrescentará ao que já foi feito, até agora,
contra os indivíduos e o partido, sejam eles culpados ou não, perante as leis
penais do país. O processo judicial, aliás, já é secundário, pois o essencial é
que o combate entre os dois blocos já tem um resultado político: o bloco do
Presidente Lula, em que pese a vitória dos seus dois governos, tornou-se -
partir do processo midiático - um bloco de políticos mensaleiros, cujas
práticas não diferem, no senso comum, de qualquer dos partidos tradicionais.
Vai ser muito duro recuperar estas perdas. Mas elas serão recuperadas, pois o
povo já se acostumou a ver o que está em cima da mesa da democracia e sabe que
ali tem coisas para repartir.
Tarso Genro
é atualmente Governador do Estado do Rio Grande do Sul
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