Se se podem deitar abaixo ditaduras na Europa - primeiros os fascistas, depois os soviéticos - por que não se podem derrubar ditadores no grande mundo árabe muçulmano? E - só por um instante, pelo menos - deixem a religião fora da discussão.
Via Esquerda.Net de Portugal
Mubarak alegou que os islamistas estariam por trás da Revolução Egípcia. Ben Ali disse o mesmo, na Tunísia. O rei Abdullah da Jordânia vê uma sinistra mão escura – da al-Qa’ida, da Fraternidade Muçulmana, sempre mão islâmica – por trás da insurreição civil em todo o mundo árabe. Ontem, autoridades do Bahrein descobriram a amaldiçoada mão do Hezbollah, ali, por trás do levante xiita. Onde se lê Hezbollah, leia-se Irã.
Por que, diabos, tantos intérpretes cultos, embora impressionantemente andidemocráticos, insistem em interpretar tão mal as revoltas árabes? Confrontados por uma série de explosões seculares – o caso do Bahrein não cabe perfeitamente nessa classificação – todos culpam os islâmicos radicais. O Xá cometeu o mesmo erro, só que ao contrário: confrontado com um óbvio levante islâmico, pôs a culpa nos comunistas.
Os infantilóides Obama e Clinton acharam explicação ainda mais esdrúxula. Depois de muito terem apoiado as ditaduras “estáveis” do Oriente Médio – quando tinham a obrigação de defender as forças democráticas –, resolveram apoiar os clamores por democracia no mundo árabe, justamente quando os árabes já estão tão absolutamente desencantados com a hipocrisia dos ocidentais, que não querem os EUA ao lado deles. “Os EUA interferem em nosso país há 30 anos, apoiando o governo de Mubarak, armando os soldados de Mubarak” – disse-me um estudante egípcio na Praça Tahrir, semana passada. “Agora, agradeceríamos muito se parassem de interferir, mesmo que a nosso favor.” No final da semana, ouvi vozes idênticas no Bahrain. “Estamos sendo assassinados por armas dos EUA, disparadas por soldados bahrainis treinados nos EUA, em tanques fabricados nos EUA” – disse-me um médico na 6ª-feira. “E Obama, agora, quer aparecer como nosso aliado?”
Os eventos dos últimos meses e o espírito antirregime da insurreição árabe – que clama por dignidade e justiça, não por algum emirado islâmico – ficarão nos nossos livros de histórias por séculos e séculos. E o fracasso dos islamistas mais obcecados será discutido por décadas. Havia especial ardor na gravação da al-Qa`ida divulgada ontem e gravada antes da queda de Mubarak, que falava da necessidade de o Islã triunfar no Egito. E uma semana antes, homens e mulheres, seculares, nacionalistas, egípcios, muçulmanos e cristãos, pela própria força e meios, haviam-se livrado do velho ditador, sem qualquer ajuda de Bin Laden Inc.
Ainda mais esquisita foi a reação do Irã, cujo supremo líder convenceu-se de que o sucesso do povo egípcio fora sucesso do Islã. Só a al-Qa`ida, o Irã e seus mais odiados inimigos – os ditadores anti-islamistas – ainda creem que a religião esteja por trás da rebelião das massas democráticas no Oriente Médio.
A mais terrível ironia de todas – de que só muito lentamente Obama deu-se conta – é que a República Islâmica do Irã elogiava os democratas do Egito, ao mesmo tempo em que ameaçava executar seus próprios opositores.
Não foi, como se viu, uma grande semana para o “islamicismo” [orig. “Islamicism”]. Há detalhes a considerar, é claro. Quase todos os milhões de manifestantes árabes que querem quebrar o pescoço da autocracia que – com importante colaboração ocidental – sufoca a vida deles com humilhações e medo, são, sim, muçulmanos. E os muçulmanos – diferentes do ocidente ‘cristão’ – não perderam a fé.
Contra os tanques e chicotes e porretes dos assassinos da polícia de Mubarak, eles lutavam a pedradas, gritando “Allah akbar”, e aquela luta era, sim, para eles, uma “jihad” – palavra que não significa “guerra religiosa”, mas significa “lutar pela justiça”. Gritar “Deus é grande” e lutar por justiça são movimentos absolutamente lógico-consistentes e esse é o próprio espírito profundo do Corão.
No Bahrein temos caso especial. Aqui, a maioria xiita é governada por uma minoria de muçulmanos sunitas pró-monarquia. A Síria, aliás, pode ser contaminada pela “bahrainite” pela mesma razão: ali também uma maioria sunita é governada por uma minoria alawita (xiita). Mas, ora essa, o Ocidente pode alegar, pelo menos – no já bem pouco entusiasmado apoio que ainda oferece ao rei Hamad do Bahrain – que o Bahrein, como o Kuwait, tem um Parlamento. É pobre mostrengo velho, que existiu de 1973 a 1975, quando foi inconstitucionalmente dissolvido, e depois reinventado, em 2001, num pacote de “reformas”. Mas o novo parlamento conseguiu ser ainda menos representativo que o anterior. Os políticos da oposição foram caçados pela polícia política, e os distritos eleitorais redesenhados, ao estilo do Ulster, para garantir que a minoria sunita controlasse todo o parlamento. Em 2006 e 2010, por exemplo, o principal partido xiita no Bahrain ganhou só 18, dos 40 assentos no parlamento. Há clara semelhança com o que houve na Irlanda do Norte, nas perspectivas dos sunitas no Bahrain. Muitos me disseram que temem pela vida; que temem que soldados xiitas queimem suas casas e matem suas famílias.
Tudo isso haverá de mudar. O controle pelo Estado só é efetivo se for legítimo, e usar munição real contra manifestantes pacíficos e desarmados só sugere que as coisas podem acabar, no Bahrein, numa série de pequenos “Domingos Sangrentos”. Quando os árabes tenham aprendido a domar o medo, poderão exigir direitos civis, como os católicos na Irlanda do Norte exigiram, chegada a hora, ante a brutalidade do Royal Ulster Constabulary (RUC, polícia da Irlanda do Norte). No final, os britânicos tiveram de desconsiderar a legislação unionista e admitir que o IRA (Irish Revolucionary Army) dividisse o poder com os protestantes. Os paralelos não são exatos e os xiitas (ainda) não têm milícias, embora o governo do Bahrain tenha exibido fotografias de pistolas e espadas – para o IRA, sequer seriam consideradas armas –, para provar que haveria “terroristas” entre os manifestantes.
Há no Bahrein, sim, uma batalha sectária, ao lado de uma batalha secular, algo que até o Príncipe Coroado acertou ao reconhecer, quando disse, originalmente, que as forças de segurança tiveram de suprimir os protestos para evitar a violência sectária. É ideia que tem sido divulgada empenhadamente pela Arábia Saudita, que tem fortes interesses em suprimir qualquer agitação no Bahrein. Os xiitas da Arábia Saudita podem ver suas posições reforçadas se xiitas do Bahrein passarem a controlar o Estado. Nesse caso, sim, os líderes da República Islâmica Xiita por-se-ão, de fato, a cantar de galo.
Mas essas insurreições interconectadas não devem ser postas como fatores determinantes de tudo que aconteça no Oriente Médio. O levante no Iêmen contra o presidente Saleh (há 32 anos no poder) é democrático, mas também é tribal, e a oposição não tardará a armar-se. O Iêmen é sociedade pesadamente armada, várias tribos, cada qual com sua bandeira, nacionalismo rampante. E, depois, há a Líbia.
Gaddafi é non-sense, com suas teorias do “Livro Verde” – mas despachou os manifestantes benghazi, semana passada, quanto exibiram versão concreta desse específico volume –, extravagante, seu governo é desumano, cruel (e já dura, lá, há 42 anos). É um Ozymandias [1] antes da queda. Seu flerte com Berlusconi – ainda pior: seu caso de amor com Tony Blair, cujo secretário do Exterior, Jack Straw, chamava de “estadista” o lunático da Líbia – jamais o salvará. Mais coberto de medalhas que o general Eisenhower, em busca desesperada de um cirurgião plástico que lhe ajeite a papada, essa ruína humana ameaça agora com castigo “terrível” os líbios que o desafiem. Sobre a Líbia é preciso lembrar duas coisas: como o Iêmen, a Líbia é terra de tribos; e, quando a Líbia levantou-se contra os fascistas, deu início a uma guerra de libertação. Os bravos comandantes líbios enfrentaram o laço da forca com inacreditável coragem. Gaddafi é doido. Isso não implica que os líbios sejam idiotas.
Por tudo isso, está acontecendo um maremoto político, social, cultural, no mundo do Oriente Médio. Haverá muitas tragédias, muito sangue derramado, muitas novas esperanças. O melhor a fazer é não ler, ignorar completamente todos os analistas e os “think tanks” cujos ‘especialistas’ imbecilizados dominam todos os canais de televisão. Se os tchecos podem ser livres, por que os egípcios não poderiam? Se se podem por abaixo ditaduras na Europa – primeiros os fascistas, depois os soviéticos – por que não se podem derrubar ditadores no grande mundo árabe muçulmano? E – só por um instante, pelo menos – deixem a religião fora da discussão.
Robert Fisk é o correspondente estrangeiro britânico mais premiado. Ele recebeu o Prêmio Correspondente Internacional Britânico do Ano sete vezes (as últimas em 1995 e 1996). Também ganhou o Prêmio à Imprensa da Anistia Internacional no Reino Unido em 1998 e 2000. É considerado um dos maiores especialistas nos conflitos do Oriente Médio. Atualmente trabalha para o The Independent de Londres.
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