quarta-feira, 13 de julho de 2011

O rock na música do século XX

Por André Egg, no Amálgama


Dou aulas de história da música do século XX no curso superior. A maioria dos cursos superiores de música, incluído aquele que cursei na década de 1990, não tem ouvidos para o rock – dedica atenção apenas à música de concerto e suas experiências de vanguarda.

Como professor, me proponho não repetir o mesmo erro de que fui vítima. Considero um absurdo pretender falar de música do século XX e não tratar de música popular, especialmente o rock. Porque foi um século marcado profundamente pelas tecnologias de reprodução mecânica (fonograma, rádio, cinema sonoro, televisão) e pela concomitante ascensão cultural de gêneros musicais anteriormente desqualificados, por serem de transmissão oral num mundo de domínio da cultura letrada. Trocando em miúdos, para uma música ser considerada digna de estudo, ela deveria ser anotada em partitura, mesmo que ao longo de todo o século XX a porção mais importante da produção musical passasse ao largo da anotação em papel pautado, saindo da cabeça dos músicos diretamente para os meios de registro sonoro mecânico.

Demorou um tempo para que gêneros estritamente ligados ao fonograma, como o jazz e o samba, pudessem merecer o status de representação musical legítima e de patrimônio cultural – respectivamente de Estados Unidos e Brasil. Especialmente nas décadas de 1950 e 1960 surgiu toda uma escola de cronistas e historiadores que escreveram livros sobre jazz ou sobre Música Popular Brasileira, e estas duas tradições musicais se tornaram assunto de círculos de elite e de intelectuais letrados, ao mesmo tempo em que continuavam sendo um produto cultural de alto valor comercial.

Mas o rock até hoje continua no limbo. Não tem a reputação de domínio técnico dos músicos como construída no jazz ou no choro. Não tem a reputação de memória cultural da nação ou da comunidade negra como o samba. Teve sua miríade de movimentos e bandas, cada uma com fãs específicos que tendem a considerar as outras bandas ou estilos como ilegítimas. Se as classes médias e os intelectuais acadêmicos já são capazes de defender abertamente o samba ou o jazz como produto cultural legítimo, como arte, o rock ainda enfrenta dificuldade em obter nível igual de reconhecimento – embora devesse, por todos os motivos. Um pequeno mergulho nessa história pode nos ajudar a pensar a importância dessa música que se tornou a mais significativa da segunda metade do século passado, e que participou do processo de ascensão da juventude como categoria social e política diferenciada, ajudando a marcar transformações permanentes e ainda atuantes na forma como o mundo se organiza.

Pode-se dizer que o rock começou a ganhar forma nos Estados Unidos, em meados da década de 1950, mas se tornou um movimento artístico articulado na Inglaterra na década de 1960, desdobrando-se nas décadas seguintes em movimentos sucessivos e referentes entre si, exatamente no mesmo padrão de desenvolvimento histórico notado nos movimentos musicais e artísticos do período moderno.

A idéia de gravar músicos negros cantando composições derivadas da tradição rural dos escravos norte-americanos pode ser remetida aos movimentos dos intelectuais comunistas que engrendraram as primeiras coleções de gravações de folk music, coletadas diretamente no campo a partir da década de 1940. Em meados da década de 1950, um empresário se tornou pioneiro da gravação de cancionistas negros como negócio lucrativo: Leonard Chess, que saiu do ramo de ferro-velho para abrir a lendária Chess Records, o selo pioneiro que lançou Muddy Waters e, principalmente, Chuck Berry como pioneiros do novo gênero. A história desta gravadora é muito bem exposta no filme Cadillac Records.

Mas os limites da atuação destes artistas negros estavam dados pela collor line que dividia os EUA em grupos de pessoas hierarquizadas pela cor da pele. Ou seja, os artistas negros tinham seu sucesso limitado ao público negro, e a um mercado nascente do público juvenil-adolescente, que pela primeira vez na história tinha dinheiro para consumo nos EUA da “era de ouro” do desenvolvimento econômico capitalista.

As grandes gravadoras ou os nascentes canais de televisão não estavam dispostos a investir em artistas negros, o que levava ao fenômeno dos artistas cover: uma canção poderia chamar a atenção na voz de um cantor-compositor negro como Chuck Berry, que chegou a ser preso em situação pra lá de duvidosa e teve sua carreira arruinada, mas ela somente se tornaria um sucesso comercial de primeira linha na voz de artistas brancos das majors, como Pat Boone ou Elvis Presley. Como exemplo, em 1955, “Ain’t that a shame” chegou em 6° lugar na Billboard com o compositor Fats Domino, mas tornou-se 1° lugar nas paradas na versão de Pat Boone:

O único destes pioneiros do Rithm and Blues a assinar com uma das grandes gravadoras (Decca) foi o cantor branco Bill Halley.

Além do “incômodo” que causava a aparição de artistas negros numa sociedade intolerante como a norte-americana, implodindo o padrão macho-branco-cristão, o comportamento destes primeiros roqueiros era provocante, tanto na postura de palco, como nas danças e nas letras.

Por exemplo, o “passo de ganso” de Chuck Berry em seu hit “Jonny B Goode”, aqui numa apresentação para a TV em 1958. Note que o músico transforma sua guitarra num instrumento quase sexual:

A alusão ao sexo e as letras chulas também incomodavam a nação WASP, o que fez com que a gravadora exigisse de Little Richard uma nova letra para sua música “Tutti Frutti”, cujo texto original era:

Tutti frutti, good booty
If it don’t fit, don’t force it
You can grease it, make it easy

Mas que foi retrabalhada para ser lançada assim, de forma menos ofensiva ao público comportado:

Pode-se dizer que estes artistas, que foram os pioneiros do rock no mercado de entretenimento norte-americano na segunda metade da década de 1950, foram responsáveis pelo início de um choque radical, que trazia à baila um novo discurso estético, formatado talvez mais para a televisão que propriamente para o fonograma, que incorporava novas posturas de palco, novos instrumentos musicais e, principalmente – o que seria a maior inovação musical do rock – a substituição da ideia de artista individual para o surgimento da figura da banda como um coletivo indissolúvel.

Neste sentido, e na pretensão do rock a se tornar um movimento artístico de vanguarda, para muito além da ambição comercial destes primeiros sucessos das race records norte-americanas, quem verdadeiramente criou o gênero foram os adolescentes ingleses que ouviram estas músicas e se tornaram fãs. Estes garotos tomaram o Rithm and Blues como ponto de partida para novas construções musicais, e terminaram revolucionando por completo a própria noção de música.

Foram eles, já nos anos 1960, os Rolling Stones, The Beatles e The Who. Definitivamente estes conjuntos não eram feitos por músicos ou instrumentistas talentosos – era o conjunto que pesava. De modo que, todos os fãs sabem disso com propriedade, sacar um músico desta formação e tentar substituí-lo significava simplesmente o fim da banda como som reconhecível. Mais do que isso, o rock que foi feito por esses garotos britânicos não era apenas uma música de músicos. O papel do produtor musical, do equipamento utilizado, do estúdio escolhido para a gravação e do engenheiro de som passaram a ser primordiais. De modo que a receita exata incluía aquela banda com aquela formação com aquele produtor naquele estúdio e com aquele engenheiro. Qualquer mudança em um dos fatores significava a perda da mística.

Estas bandas construíram uma discografia que já se tornou clássica, e levaram o rock a atingir o topo do Olimpo das artes do século XX, especialmente se pensarmos em álbuns antológicos como Sargent Pepper’s(1967) ou o chamado Álbum Branco de 1968. Aliás, mais um fator a se considerar, LP’s como esses mudaram o formato da obra de arte musical: de uma canção ou música específica como obra em si para a noção de álbum como obra – incluindo a capa e o encarte. Isso permite entender um pouco porque alguém que entende de música não se desfaz de seus antigos álbuns de vinil, mesmo diante de tecnologias superiores.

O rock se tornou uma modalidade artística quando percebemos que as discografias destas bandas passam a desfrutar de um status incontestável no panteão das grandes obras musicais do século XX, e quando estas bandas antológicas se tornam referências para novas bandas que se articulam em movimentos que procuram superar/contestar o som das bandas anteriores. Desse modo se encadeia uma nova geração de bandas, também inglesas, como Deep Purple, Led Zeppelin, Black Sabbath (o chamado Heavy Metal), ou Genesis, Yes e Pink Floyd (pioneiras do que veio a ser conhecido como Rock Progressivo) — que me perdoem os fãs de Emerson, Lake and Palmer, King Crimson ou Van der Graf Generator.

Cada vez que um movimento era assimilado pela indústria de entretenimento, que os artistas outrora questionadores eram amansados pelo dinheiro e pela fama, que as bandas se desfaziam em intermináveis brigas ou em mortes por overdose, sempre estava à espreita uma nova geração de garotos que não tinham aprendido a tocar guitarra direito, mas que estavam dispostos a transformar suas limitações em qualidades primordiais para criar um novo som inusitado, como fizeram as bandas punk nos anos 1970.

Sem deixar de lado alguns artistas norte-americanos que inseriram seus nomes neste panteão inglês, como o lendário guitarrista Jimmy Hendrix, que transformou a obrigatoriedade de tocar o hino nacional norte-americano em apresentações em uma ácida crítica às bombas lançadas sobre o Vietnã, renovando completamente a noção do que é tocar um instrumento musical:

Escrever sobre a importância do rock pode se tornar uma missão interminável tal o montante de bandas, artistas e álbuns cuja importância tornaria sua menção obrigatória num texto como esse. Paro sem ter conseguido chegar nem perto de arranhar a importância histórica do rock. E deixo aqui o tributo a esta música que melhor representa o que foi o som dos últimos 50 anos.

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