Por Tiago Barbosa Mafra
O Programa Mais Médicos do Governo Federal, lançado em 2013 com intuito de atender a demanda por melhorias na saúde brasileira em todos os aspectos, tem gerado muita discussão e trazido à tona a defasagem ainda existente nesse setor tão importante do serviço público brasileiro.
As críticas principais, levantadas por conselhos estaduais de medicina, pelo conselho federal e outros grupos de profissionais da saúde, referem-se à validação dos diplomas, origem dos médicos, a falta de domínio da língua, os procedimentos vistos como não compatíveis com a realidade brasileira e mesmo o erro de foco, que segundo os acusadores, deveria estar na estrutura oferecida para o sistema de saúde e não em profissionais.
Na verdade há nesse contexto, todo um processo histórico que gera essa tamanha indignação por parte da elite médica. Cabe lembrar que até o final da década de 1980, o sistema de saúde estava vinculado ao sistema previdenciário, o que fazia com que milhões de pessoas figurasse ausentes da cobertura. Essa estrutura que vigorou até pouco mais de 25 anos atrás, erigiu uma estrutura dominada pelos hospitais privados, verdadeiras corporações que cobriam as obrigações do Estado através de convênios e terceirizações, obviamente que acabavam por penalizar os mais pobres e geograficamente distantes dos centros de atendimento.
Contraditoriamente ao andamento histórico do desmonte do Estado de Bem estar Social e da hegemonização do pensamento neoliberal, o Brasil da década de 1980 constrói uma proposta de sistema público de saúde universal, integral, público e participativa socialmente. Com uma proposta de hierarquização e regionalização de serviços conforme a complexidade, o SUS surge como uma proposta arrojada e de democratização de uma direito até então fora do alcance de milhões de brasileiros.
Mas as várias décadas de privatismo e os interesses do complexo industrial da saúde, atreladas às dificuldades de investimentos a que os anos 1990 do neoliberalismo fadaram o país, ainda fazem com que a efetiva implementação do SUS encontre barreira e chegue mesmo a ser questionada sobre sua validade, mesmo com pouco mais de duas décadas de funcionamento.
O país passou pela mesma lógica de desmonte durante a década de 1990, sempre com um
aparato midiático que questionava e ainda questiona o tamanho do Estado e sua capacidade de impulsionar investimentos e gerenciar sistemas tão amplos e complexos como o SUS. Toda a estrutura privada de saúde não desapareceu com a vida da universalização da saúde. Na verdade, se encrustou como uma trincheira de defesa do privado frente ao público, colocando interesses que não coletivos como norteadores de seus trabalhos e o lucro como objetivo máximo.
Resultado desse quadro é a divisão desigual de estrutura hospitalar e de atendimento básico, bem como da indisponibilidade de médicos para atender em áreas pobres, distantes e sem estrutura básica. Felizmente, após anos de influência dos ditames do Consenso de Washington, uma onda democrática de governos progressistas passou a avançar sobre a América Latina, contrapondo o pensamento até então hegemônico do neoliberalismo. No Brasil, essa contraposição passa a ter reflexo na estruturação social, com geração de emprego, aumento da renda e do salário mínimo e aquecimento da economia. Com dez anos dessa nova orientação de redistribuição de renda, a cobrança por serviços públicos foi aos poucos tomando conta da pauta de reivindicações colocadas pela população.
O Governo Federal optou, após um longo período de conciliação de classes que apresenta sinais de esgotamento, em fazer o que era necessário: defender e fortalecer o público, mesmo frente as críticas da elite médica. Aliás, críticas que não se embasam, tendo em vista a amplitude do Programa Mais Médicos, tão questionado nas últimas semanas.
Priorizando sim a estrutura e o fortalecimento do atendimento básico em áreas onde os elitizados médicos não querem ir, o Ministério tem 15 bilhões de reais em investimentos para infra estrutura e hospitais universitários, sendo mais de 7 bilhões já em execução. Além disso há recursos novos para construção de 6 mil UBS´s, ampliação de mais de 11 mil unidades e construção de 225 UPA´s. Assim, isso demonstra que o objetivo não é apenas aumentar o número de médicos disponíveis, mas também ampliar a infraestrutura em especial nas áreas mais distantes e pobres, onde até o atendimento primário é precário.
Além disso, mais de 11 mil vagas para medicina serão disponibilizadas pelo MEC até 2017, contribuindo para a redução do déficit de médicos, além de atrelar a formação à necessidade de prestação de serviços públicos durante dois anos.
Outro aspecto que necessita ser ressaltado é o de que os médicos cubanos, os primeiros
estrangeiros a chegar para auxiliar no início do Programa Mais Médicos tem um perfil que não condiz com o propagado pelos conselhos de medicina e pela mídia conservadora. Dos primeiros 400 médicos que chegaram ao Brasil, 84% tem mais de 16 anos de experiência, 42% já atuaram em missões de solidariedade de Cuba em outros países e 91% deles irão para áreas do Norte e Nordeste, onde há grande deficiência inclusive no atendimento básico primário.
Cabe ressaltar que as críticas tem sido seletivas, uma vez que há estados e municípios que sequer cumprem o constitucional básico de investimento em saúde, como é o caso de Minas Gerais, mas não são colocados como alvo ou sequer penalizados pela mídia. O estado mineiro descumpre os 12% mínimos de investimento em saúde e ainda recorre a subterfúgios chamados de Termo de Ajuste de Gestão (TAG) que o “autoriza” a descumprir a Constituição Federal.
A opção pelo embate que adotou o Governo Federal é um indicativo forte que o momento é de aprofundamento das reformas iniciadas há uma década, que deram seus frutos e que agora exigem uma opção mais clara de qual lado será o que continuará recebendo prioridade: a elite conservadora e seu impulso pelo privatismo/corporativismo ou a classe trabalhadora que clama por serviços públicos efetivamente amplos e com qualidade que a Constituição prevê, mas que até hoje ainda encontra dificuldades para sua consolidação.
Na verdade, o que vemos em andamento é um aprofundamento da solidariedade entre os povos, a possível retomada da luta de classes, sem escamotear os geradores da pobreza e da desigualdade, a violência estrutural e as diferenças sociais ainda gritantes na sociedade brasileira. Enfrentar essa pauta é enfrentar seus geradores, é enfrentar o próprio sistema.
Não há outra análise senão a feita pelo médico Josué de Castro décadas atrás, mas que cabe ainda hoje em razão das contradições ainda vigentes: "Vivemos hoje uma hora de luta decisiva entre o pão e o ouro, simbolizando o pão a segurança e o ouro a especulação." A luta continua. Que venham os médicos e que aprofundemos a solidariedade entre os povos, a opção pelos pobres, a disposição pela redução da desigualdade e a busca por um modelo de sociedade que não reproduza mais a dominação e a exploração.
Tiago Barbosa Mafra é professor de Geografia na rede pública municipal de Poços de Caldas e membro do pré vestibular comunitário Educafro Núcleo Laudelina de Campos Melo.
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