Lembrei-me dessa ótima entrevista de Eric Hobsbawm,
publicada pela Fundação Lauro Campos em 2008. Como (graças
a Deus!) ninguém é eterno, perdemos Hobsbawm enquanto homem, mas
sua criticidade e capacidade de reflexão e análise sobre a História e a
sociedade continuará presente entre nós por muito tempo ainda.
Marcello Musto: Professor Hobsbawm, duas décadas
depois de 1989, quando foi apressadamente relegado ao esquecimento, Karl Marx
regressou ao centro das atenções. Livre do papel deintrumentum regni que lhe
foi atribuído na União Soviética e das ataduras do "marxismo-leninismo",
não só tem recebido atenção intelectual pela nova publicação de sua obra, como
também tem sido objeto de crescente interesse. Em 2003, a revista
francesaNouvel Observateur dedicou um número especial a Marx, com um título
provocador: "O pensador do terceiro milênio?". Um ano depois, na
Alemanha, em uma pesquisa organizada pela companhia de televisão ZDF para
estabelecer quem eram os alemães mais importantes de todos os tempos, mais de
500 mil espectadores votaram em Karl Marx, que obteve o terceiro lugar na
classificação geral e o primeiro na categoria de "relevância atual".
Em 2005, o semanário alemão Der Spiegel publicou
uma matéria especial que tinha como título "Ein Gespenst Kehrt zurük"
(A volta de um espectro), enquanto os ouvintes do programa "In Our
Time" da rádio 4, da BBC, votavam em Marx como o maior filósofo de todos
os tempos. Em uma conversa com Jacques Attali, recentemente publicada, você
disse que, paradoxalmente, "são os capitalistas, mais que outros, que
estão redescobrindo Marx" e falou também de seu assombro ao ouvir da boca
do homem de negócios e político liberal George Soros a seguinte frase:
"Ando lendo Marx e há muitas coisas interessantes no que ele diz".
Ainda que seja débil e mesmo vago, quais são as razões para esse renascimento
de Marx? É possível que sua obra seja considerada como de interesse só de
especialistas e intelectuais, para ser apresentada em cursos universitários
como um grande clássico do pensamento moderno que não deveria ser esquecido? Ou
poderá surgir no futuro uma nova "demanda de Marx", do ponto de vista
político?
Eric Hobsbawm: Há um indiscutível renascimento
do interesse público por Marx no mundo capitalista, com exceção, provavelmente,
dos novos membros da União Européia, do leste europeu. Este renascimento foi
provavelmente acelerado pelo fato de que o 150° aniversário da publicação do
Manifesto Comunista coincidiu com uma crise econômica internacional
particularmente dramática em um período de uma ultra-rápida globalização do
livre-mercado.
Marx previu a natureza da economia mundial no
início do século XXI, com base na análise da "sociedade burguesa",
cento e cinqüenta anos antes. Não é surpreendente que os capitalistas
inteligentes, especialmente no setor financeiro globalizado, fiquem
impressionados com Marx, já que eles são necessariamente mais conscientes que outros
sobre a natureza e as instabilidades da economia capitalista na qual eles
operam.
A maioria da esquerda intelectual já não sabe o que
fazer com Marx. Ela foi desmoralizada pelo colapso do projeto social-democrata
na maioria dos estados do Atlântico Norte, nos anos 1980, e pela conversão
massiva dos governos nacionais à ideologia do livre mercado, assim como pelo
colapso dos sistemas políticos e econômicos que afirmavam ser inspirados por
Marx e Lênin. Os assim chamados "novos movimentos sociais", como o
feminismo, tampouco tiveram uma conexão lógica com o anti-capitalismpo (ainda
que, individualmente, muitos de seus membros possam estar alinhados com ele) ou
questionaram a crença no progresso sem fim do controle humano sobre a natureza
que tanto o capitalismo como o socialismo tradicional compartilharam. Ao mesmo
tempo, o "proletariado", dividido e diminuído, deixou de ser crível
como agente histórico da transformação social preconizada por Marx.
Devemos levar em conta também que, desde 1968, os
mais proeminentes movimentos radicais preferiram a ação direta não
necessariamente baseada em muitas leituras e análises teóricas. Claro, isso não
significa que Marx tenha deixado de ser considerado como um grande clássico e
pensador, ainda que, por razões políticas, especialmente em países como França
e Itália, que já tiveram poderosos Partidos Comunistas, tenha havido uma
apaixonada ofensiva intelectual contra Marx e as análises marxistas, que
provavelmente atingiu seu ápice nos anos oitenta e noventa. Há sinais agora de
que a água retomará seu nível.
Marcello Musto: Ao longo de sua vida, Marx foi um
agudo e incansável investigador, que percebeu e analisou melhor do que ninguém
em seu tempo o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial. Ele entendeu
que o nascimento de uma economia internacional globalizada era inerente ao modo
capitalista de produção e previu que este processo geraria não somente o
crescimento e prosperidade alardeados por políticos e teóricos liberais, mas
também violentos conflitos, crises econômicas e injustiça social generalizada.
Na última década, vimos a crise financeira do leste asiático, que começou no
verão de 1997; a crise econômica Argentina de 1999-2002 e, sobretudo, a crise
dos empréstimos hipotecários que começou nos Estados Unidos em 2006 e agora
tornou-se a maior crise financeira do pós-guerra. É correto dizer, então, que o
retorno do interesse pela obra de Marx está baseado na crise da sociedade
capitalista e na capacidade dele ajudar a explicar as profundas contradições do
mundo atual?
Eric Hobsbawm: Se a política da esquerda no
futuro será inspirada uma vez mais nas análises de Marx, como ocorreu com os
velhos movimentos socialistas e comunistas, isso dependerá do que vai acontecer
no mundo capitalista. Isso se aplica não somente a Marx, mas à esquerda
considerada como um projeto e uma ideologia política coerente. Posto que, como
você diz corretamente, a recuperação do interesse por Marx está
consideravelmente – eu diria, principalmente – baseado na atual crise da
sociedade capitalista, a perspectiva é mais promissora do que foi nos anos
noventa. A atual crise financeira mundial, que pode transformar-se em uma
grande depressão econômica nos EUA, dramatiza o fracasso da teologia do livre
mercado global descontrolado e obriga, inclusive o governo norte-americano, a
escolher ações públicas esquecidas desde os anos trinta.
As pressões políticas já estão debilitando o
compromisso dos governos neoliberais em torno de uma globalização
descontrolada, ilimitada e desregulada. Em alguns casos, como a China, as
vastas desigualdades e injustiças causadas por uma transição geral a uma
economia de livre mercado, já coloca problemas importantes para a estabilidade
social e mesmo dúvidas nos altos escalões de governo. É claro que qualquer
"retorno a Marx" será essencialmente um retorno à análise de Marx
sobre o capitalismo e seu lugar na evolução histórica da humanidade –
incluindo, sobretudo, suas análises sobre a instabilidade central do
desenvolvimento capitalista que procede por meio de crises econômicas
auto-geradas com dimensões políticas e sociais. Nenhum marxista poderia
acreditar que, como argumentaram os ideólogos neoliberais em 1989, o
capitalismo liberal havia triunfado para sempre, que a história tinha chegado
ao fim ou que qualquer sistema de relações humanas possa ser definitivo para
todo o sempre.
Marcello Musto: Você não acha que, se as forças
políticas e intelectuais da esquerda internacional, que se questionam sobre o
que poderia ser o socialismo do século XXI, renunciarem às idéias de Marx,
estarão perdendo um guia fundamental para o exame e a transformação da
realidade atual?
Eric Hobsbawm: Nenhum socialista pode renunciar
às idéias de Marx, na medida que sua crença em que o capitalismo deve ser
sucedido por outra forma de sociedade está baseada, não na esperança ou na
vontade, mas sim em uma análise séria do desenvolvimento histórico,
particularmente da era capitalista. Sua previsão de que o capitalismo seria
substituído por um sistema administrado ou planejado socialmente parece
razoável, ainda que certamente ele tenha subestimado os elementos de mercado
que sobreviveriam em algum sistema pós-capitalista.
Considerando que Marx, deliberadamente, absteve-se
de especular acerca do futuro, não pode ser responsabilizado pelas formas
específicas em que as economias "socialistas" foram organizadas sob o
chamado "socialismo realmente existente". Quanto aos objetivos do
socialismo, Marx não foi o único pensador que queria uma sociedade sem
exploração e alienação, em que os seres humanos pudessem realizar plenamente
suas potencialidades, mas foi o que expressou essa idéia com maior força e suas
palavras mantêm seu poder de inspiração.
No entanto, Marx não regressará como uma inspiração
política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser
tratados como programas políticos, autoritariamente ou de outra maneira, nem
como descrições de uma situação real do mundo capitalista de hoje, mas sim como
um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista. Tampouco
podemos ou devemos esquecer que ele não conseguiu realizar uma apresentação bem
planejada, coerente e completa de suas idéias, apesar das tentativas de Engels
e outros de construir, a partir dos manuscritos de Marx, um volume II e III de
"O Capital". Como mostram os "Grundrisse", aliás.
Inclusive, um Capital completo teria conformado apenas uma parte do próprio
plano original de Marx, talvez excessivamente ambicioso.
Por outro lado, Marx não regressará à esquerda até
que a tendência atual entre os ativistas radicais de converter o
anti-capitalismo em anti-globalização seja abandonada. A globalização existe e,
salvo um colapso da sociedade humana, é irreversível. Marx reconheceu isso como
um fato e, como um internacionalista, deu as boas vindas, teoricamente. O que
ele criticou e o que nós devemos criticar é o tipo de globalização produzida
pelo capitalismo.
Marcello Musto: Um dos escritos de Marx que
suscitaram o maior interesse entre os novos leitores e comentadores são os
"Grundrisse". Escritos entre 1857 e 1858, os "Grundrisse"
são o primeiro rascunho da crítica da economia política de Marx e, portanto,
também o trabalho inicial preparatório do Capital, contendo numerosas reflexões
sobre temas que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte de sua criação
inacabada. Por que, em sua opinião, estes manuscritos da obra de Marx,
continuam provocando mais debate que qualquer outro texto, apesar do fato dele
tê-los escrito somente para resumir os fundamentos de sua crítica da economia
política? Qual é a razão de seu persistente interesse?
Eric Hobsbawm: Desde o meu ponto de vista, os
"Grundrisse" provocaram um impacto internacional tão grande na cena
marxista intelectual por duas razões relacionadas. Eles permaneceram
virtualmente não publicados antes dos anos cinqüenta e, como você diz, contendo
uma massa de reflexões sobre assuntos que Marx não desenvolveu em nenhuma outra
parte. Não fizeram parte do largamente dogmatizado corpus do marxismo ortodoxo
no mundo do socialismo soviético. Mas não podiam simplesmente ser descartados.
Puderam, portanto, ser usados por marxistas que queriam criticar ortodoxamente
ou ampliar o alcance da análise marxista mediante o apelo a um texto que não
podia ser acusado de herético ou anti-marxista. Assim, as edições dos anos
setenta e oitenta, antes da queda do Muro de Berlim, seguiram provocando
debate, fundamentalmente porque nestes escritos Marx coloca problemas importantes
que não foram considerados no "Capital", como por exemplo as questões
assinaladas em meu prefácio ao volume de ensaios que você organizou (Karl
Marx's Grundrisse. Foundations of
the Critique of Political Economy 150 Years Later, editado por M. Musto,
Londres-Nueva York, Routledge, 2008).
Marcello Musto: No prefácio deste livro, escrito
por vários especialistas internacionais para comemorar o 150° aniversário de
sua composição, você escreveu: "Talvez este seja o momento correto para
retornar ao estudo dos "Grundrisse", menos constrangidos pelas
considerações temporais das políticas de esquerda entre a denúncia de Stalin,
feita por Nikita Khruschev, e a queda de Mikhail Gorbachev". Além disso,
para destacar o enorme valor deste texto, você diz que os
"Grundrisse" "trazem análise e compreensão, por exemplo, da
tecnologia, o que leva o tratamento de Marx do capitalismo para além do século
XIX, para a era de uma sociedade onde a produção não requer já mão-de-obra
massiva, para a era da automatização, do potencial de tempo livre e das
transformações do fenômeno da alienação sob tais circunstâncias. Este é o único
texto que vai, de alguma maneira, mais além dos próprios indícios do futuro
comunista apontados por Marx na "Ideologia Alemã". Em poucas palavras,
esse texto tem sido descrito corretamente como o pensamento de Marx em toda sua
riqueza. Assim, qual poderia ser o resultado da releitura dos
"Grundrisse" hoje?
Eric Hobsbawm: Não há, provavelmente, mais do
que um punhado de editores e tradutores que tenham tido um pleno conhecimento
desta grande e notoriamente difícil massa de textos. Mas uma releitura ou
leitura deles hoje pode ajudar-nos a repensar Marx: a distinguir o geral na
análise do capitalismo de Marx daquilo que foi específico da situação da
sociedade burguesa na metade do século XIX. Não podemos prever que conclusões
podem surgir desta análise. Provavelmente, somente podemos dizer que certamente
não levarão a acordos unânimes.
Marcello Musto: Para terminar, uma pergunta
final. Por que é importante ler Marx hoje?
Eric Hobsbawm: Para qualquer interessado nas idéias,
seja um estudante universitário ou não, é patentemente claro que Marx é e
permanecerá sendo uma das grandes mentes filosóficas, um dos grandes analistas
econômicos do século XIX e, em sua máxima expressão, um mestre de uma prosa
apaixonada. Também é importante ler Marx porque o mundo no qual vivemos hoje
não pode ser entendido sem levar em conta a influência que os escritos deste
homem tiveram sobre o século XX. E, finalmente, deveria ser lido porque, como
ele mesmo escreveu, o mundo não pode ser transformado de maneira efetiva se não
for entendido. Marx permanece sendo um soberbo pensador para a compreensão do
mundo e dos problemas que devemos enfrentar.
PS. Eric Hobsbawm morreu de pneumonia aos 95 anos
nas primeiras horas do dia de ontem em Londres.
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