Há muitas explicações para o 1º de abril ter se transformado no Dia da Mentira. Uma delas diz que a brincadeira surgiu na França. Desde o começo do século XVI, o Ano Novo era festejado no dia 25 de março, data que marcava a chegada da primavera. As festas duravam uma semana e terminavam no dia 1º de abril.
Em 1564, depois da adoção do calendário gregoriano, o rei Carlos IX de França determinou que o ano novo fosse comemorado no dia 1º de janeiro. Alguns franceses resistiram à mudança e continuaram a seguir o calendário antigo, pelo qual o ano iniciaria em 1º de abril. Gozadores passaram então a ridicularizá-los, a enviar presentes esquisitos e convites para festas que não existiam. Essas brincadeiras ficaram conhecidas como plaisanteries.
Em países de língua inglesa o dia da mentira costuma ser conhecido como April Fool’s Day ou Dia dos Tolos, na Itália e na França ele é chamado respectivamente pesce d’aprile e poisson d’avril, o que significa literalmente “peixe de abril”.
No Brasil, o 1º de abril começou a ser difundido em Pernambuco, onde circulou “A Mentira”, um periódico de vida efêmera, lançado em 1º de abril de 1848, com a notícia do falecimento de Dom Pedro, desmentida no dia seguinte. “A Mentira” saiu pela última vez em 14 de setembro de 1849, convocando todos os credores para um acerto de contas no dia 1º de abril do ano seguinte, dando como referência um local inexistente.
Lembro-me que, quando criança, costumava pregar peças em meus amigos, irmãos e outros parentes, muito por conta da influência de meu pai, que também gostava, e ainda gosta, de pregar trotes pueris nessa data.
Todavia, na História brasileira, um acontecimento ocorrido num 1º de abril, justamente por ter se passado no “dia da mentira”, acabou entrando para a História como tendo ocorrido em 31 de março. Isso aconteceu em 1964, quando os militares puderam, enfim, pôr em prática o que já articulavam desde a fundação da Escola Superior de Guerra em 1949. Depuseram um governo legítimo e usurparam o poder para manterem-se nele por mais de vinte anos.
Antes, em agosto de 1954, o suicídio de Getúlio Vargas adiou os planos da extrema-direita das Forças Armadas para dali dez anos. Contudo, o golpe teria de se sustentar em mentiras. Eu ousaria dizer inclusive, que, o golpe de 1964 foi um golpe mitomaníaco, tanto na origem quanto no desenrolar ou no desfecho. Uma mentira contada em cima doutra.
Isso aconteceu, como já adiantei acima, com a data que entrou para os livros de História. Substituíram o 1º de abril, dia da mentira, para o neutro 31 de março. Depois, passaram a contar, sem rubor algum, a mentira que o golpe tratava-se duma “revolução democrática”. Durante a preparação para o golpe, os militares golpistas e as forças conservadoras fundiram na cabeça de seus compatriotas, principalmente da classe média, que o então presidente João Goulart era, na verdade, um perigoso agente comunista a serviço de Havana e Moscou. Hoje sabemos – e já naquela época muitos sabiam – que eram eles (os golpistas) que trabalhavam em conluio com forças estrangeiras – fato verídico, confirmado por documentos do Departamento de Estado ianque. Eu mesmo cresci estudando nos livros de História que, “em 31 de março de 1964 as Forças Armadas deflagraram uma revolução democrática no Brasil e afastaram o perigo comunista”.
Esses militares mentirosos, apoiados pela elite igualmente mentirosa, ao usurparem o poder declararam respeito à Constituição vigente (de 1946) e ao calendário eleitoral, que por sua vez, previa eleições diretas para a presidência da República para o ano seguinte. Não demorou muito para o nariz de Pinocchio crescer. Suspenderam a eleição em questão e, mais tarde, com o advento da AI-5, a chamada linha dura do Exército patrocinou outro golpe dentro do golpe, postergando a ditadura por mais 17 anos.
No desenrolar se afundaram ainda mais em outras mentiras. Sofismaram que, o estado de exceção trazido por eles tratava-se dum estado de direito. Para tanto, deixaram, na maior parte do tempo, que se realizassem eleições periódicas, mantiveram o Congresso aberto e o STF funcionando. Dessa forma davam argumentos àqueles que se encontravam em prol do regime e tentavam ocultar os efeitos desse sobre a sociedade civil. No entanto, com a perseguição e cassação sistemática de líderes populares, dos políticos oposicionistas mais aguerridos, da maior parcela da classe intelectual, dos artistas que se opunham ao regime e a censura imposta, e, sobretudo, pelas torturas e assassinatos cometidos a mando da hierarquia militar, consumava-se, inegavelmente, o autoritarismo como marca daqueles tempos. Além de tudo isso, os militares souberam impor a partir de 1965, a proibição de eleições diretas para prefeito em capitais e mais algumas cidades estratégicas, para governador em todos os estados da federação e para presidente da República. Para facilitar o controle do regime sobre a classe política, extinguiram, na base da truculência obviamente, os partidos existentes e implantaram um bi-partidarismo onde os partidos remanescentes se dividiam em: Arena, partido do “sim senhor general”; e MDB, partido do “sim senhor”.
No sentido econômico venderam a mentira do Brasil grande, preparado para o futuro, gigante da economia mundial, quando na verdade mostravam uma inépcia diante das crises cíclicas do capitalismo – vide a atitude dos militares frente à crise do petróleo na década de 1970, por exemplo. Levaram o país a uma generalizada onda estatizante, cuja idéia principal era aumentar o controle sobre a sociedade. No período inicial da ditadura puseram em prática uma série de projetos de crescimento, mais tarde conhecido como “milagre econômico”. Este “milagre”, entretanto, culminou numa forte concentração de riquezas, contribuindo de forma enfática para aprofundar ainda mais o fosso da desigualdade social no país. Ao final da ditadura militar, já no governo do ditador João Baptista Figueiredo, assistimos atônitos a explosão da enorme dívida externa acumulada e ao avanço do processo inflacionário.
O desfecho da ditadura não poderia ter sido nada mais além de outra mentira colossal. A eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral – uma invenção dos militares a fim de manterem o poder a afastar as forças populares da decisão – em janeiro de 1985. Qual o significado dessa eleição? A eleição dum político conservador, retrógrado, matreiro, de métodos tradicionais, abençoado pelos militares e tendo como companheiro de chapa um político semelhante, José Sarney, que havia sido presidente da antiga Arena, ambos compromissados em assumir um governo tutelado pelos milicos. Portanto, esses cavalheiros conspurcavam qualquer tentativa de construção duma sociedade democrática.
Como o golpe nasceu de mentiras e triunfou no dia da mentira, nada mais adequado que ainda hoje continuem seus defensores mentindo. A Folhona não esperou o 1º de abril e criou o neologismo “ditabranda” para designar a ditadura militar brasileira. Outros dos principais meios de comunicação do país pousam como vestais da democracia e liberdade, contudo, devem aos cidadãos brasileiros, explicações sobre sua participação naquele nefasto golpe. Afinal, saíram às ruas clamando pela intervenção militar e tiveram participação incisiva na desconstrução dum governo constitucional e na mobilização da classe média. Organizações Globo, Estadão, Folha – e outros veículos que a própria ditadura, por ironia do destino, acabou dando cabo – clamaram para que a caserna golpista pusesse um “basta” ao governo Goulart. É bom lembrar também que a classe política de então, em peso, apoiou o golpe. Os governadores de Minas Gerais (Magalhães Pinto), do Rio de Janeiro (Carlos Lacerda) e de São Paulo (Ademar de Barros) eram a linha de frente dessa classe, que ainda contou com o ex-presidente Juscelino Kubitschek.
Resta aos brasileiros que ainda sonham com uma sociedade mais justa e democrática lutarem para colocar o regime militar em seu devido lugar, ou seja, o de um regime baseado em mentiras, perpetrado e sustentado através de violações dos direitos cívicos e humanos, utilizador de métodos autoritários. A única verdade que há sobre esse momento funesto de nossa História está no sangue vertido por vários heróis que tiveram a coragem de lutar contra um estado de exceção. Ou então, jaz com muitos desses heróis.
P.S. Esse artigo é em memória ao Deputado Federal Carlos Marighela, ao Capitão Carlos Lamarca, aos bravos combatentes revolucionários do Araguaia, e a todos mais que tombaram lutando pelos verdadeiros ideais democráticos.
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