O que aconteceu ontem em Brasília foi sintomático dum Congresso dominado por interesses da minoria economicamente forte e articulada em detrimento dos interesses da maioria da sociedade composta por trabalhadores (letárgicos?). Noutras palavras, a velha luta de classes que muitos ideólogos do neoliberalismo e da pós-modernidade decretaram como ultrapassada, extinta, morta, sepultada, deu as caras na Câmara dos Deputados.
Estranho foi ver alguém que se diz marxista – será que é um marxista arrependido e ainda não teve coragem de expor isso – o neoruralista Aldo Rebelo, colocar-se no papel de defensor ferrenho e intransigente dos interesses da nossa porca elite fundiária, a mesma que esfola o Brasil desde a colonização portuguesa e a consequente chacina dos povos autóctones.
Raymundo Faoro em sua magistral obra “Os donos do poder” faz uma análise da evolução constitucional e jurídica de nossa sociedade, em cotejo permanente com a práxis política, que por sua vez o leva a afirmar que a cultura brasileira carrega uma cisão histórica entre ideologia e realidade. Faoro acaba por sintetizar o sufocamento das camadas populares pelas elites dominantes. Ele escreve: "a legalidade teórica apresenta conteúdo e estrutura diferentes dos costumes e da tradição populares". Isto seria um efeito do drama da cultura brasileira, sufocada pelo fardo do "prolongado domínio do patronato do estamento burocrático", pois "a nação como que se embalsamou com o braço enregelado da carapaça administrativa", tornando-se insensível a estímulos rasteiros do conjunto do tecido social.
É justamente essa insensibilidade que ficou patente quando os ruralistas – representantes declarados do agronegócio, porém eleitos com votos dos mais diversos segmentos da sociedade – sem o menor pudor aprovaram uma aberração do tipo desse novo Código Florestal, atropelando todos os preceitos que regem a relação entre representantes e representados num país que quer se firmar como sendo “democrático e civilizado”.
Não importa para os ruralistas se o novo Código Florestal, na prática, entregar nossas reservas ambientais ao agronegócio ou criar subterfúgios jurídicos a fim de se legalizar o desmatamento. Se isso garantir lucro e retorno rápido para os investimentos dos quais são representantes, o que importa o futuro da sociedade? Pode parecer uma lógica perversa, e o é, no entanto está na base de todo o sistema capitalista e o agronegócio tupiniquim, obviamente, participa desse sistema como sócio privilegiado.
Além da aprovação em si dessa aberração o que me deixa perplexo é a letargia com a qual somos obrigados a conviver. No mesmo momento em que nossos probos deputados federais aprovavam dantesca aberração com a complacência do silencio das ruas, milhares de chilenos estão mobilizados em protesto contra a construção de meia dezena de barragens hidroelétricas na Patagônia.
Triste constatação que em nossa cultura é comum entregar aos representantes uma procuração em branco para que decidam o destino da sociedade. Achamos essa prática não só aceitável, mas pior, legitima e em nenhum momento pensamos em cobrar de forma mais contundente pelas decisões tomadas por “nossos” representantes. Em suma, participamos duma plutocracia onde o voto é apenas o meio de referendá-la. Como reproduzi de Raymundo Faoro acima: "a nação [brasileira] como que se embalsamou com o braço enregelado da carapaça administrativa".
Um comentário:
Bela abordagem da mais pura verdade. 410 facadas nas costas do Brasil... Que simplesmente, não reage.
Abraço do Maltrapa
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