Tenho certeza de que, como diretor que fui de Avaliação da Capes no
período de 2004 a 2008 (verhttp://www.observatoriodauniversidade.blog.br/Blog/blog/2009/01/12/817c1...),
não privilegiei de forma alguma as áreas de Ciências Humanas, Sociais, Letras e
Artes, embora, por ser pesquisador de Filosofia, provenha deste campo. Sei que
alguns colegas de minha grande área até discordam da avaliação tal como ela é
praticada. Talvez eu até tenha tido maior apoio de outras áreas, como as
Engenharias, do que da minha, e não cansei de elogiar a posição dos
engenheiros, tanto por sua educação quanto por seus projetos e convicções.
Por isso mesmo, me sinto muito à vontade para defender as áreas de que
sou mais próximo quando considero justo fazê-lo. E, no caso, trata-se de uma
grande preocupação com a tendência de várias áreas a ignorar o que as Humanas –
no sentido mais amplo - lhes podem trazer de bom: pois não sabem a falta que
têm de um conhecimento científico sobre a sociedade e sobre o humano. Na
verdade, como todos nós somos cidadãos e portanto temos opiniões e posições
sobre a vida social (e pessoal), e isso é justo, quem não é de nossas áreas pode
confundir este mundo legítimo das opiniões e posições com o do conhecimento
rigoroso que as ciências humanas sociais geram a respeito.
Penso, sobretudo, nos projetos que dizem respeito a ganhos de
produtividade, mas num sentido mais amplo, também aos que se referem à
sustentabilidade, ao equilíbrio da natureza, aos avanços científicos em geral.
Tudo isso está sendo conduzido por nossos acadêmicos com grande qualidade.
Incentivos de várias ordens estão sendo destinados à biotecnologia, aos novos
materiais e às engenharias em geral. A Universidade Federal do ABC, por
exemplo, fruto de um projeto inteligente e inovador, está-se empenhando nas
engenharias do futuro. A Unifesp está pensando num curso de sustentabilidade
que será muito importante para juntar conhecimento e produção. Vários mestrados
e doutorados em ecologia nasceram estes últimos anos, inclusive nosso único
doutoramento no hemisfério norte (no Amapá) e um mestrado profissional numa ONG
sediada no interior de São Paulo.
Todos os elogios são insuficientes para trabalhos tão importantes para
nós. Os pesquisadores empenhados nesses projetos têm uma sensibilidade apurada
para as necessidades e anseios de nossa sociedade.
E no entanto... No entanto, falta a esses projetos, o mais das vezes,
uma presença das ciências humanas. Mais precisamente, quase tudo o que pode
repercutir no mundo da produção, seja barateando seus custos, seja reduzindo os
danos à natureza, seja de outras formas basicamente virtuosas, está sendo
conduzido sem uma reflexão científica sobre seu impacto na organização da
sociedade. Mais precisamente ainda: essas questões são discutidas como se esses
avanços fossem bons em si, independentemente de se saber como ganhos e avanços
serão apropriados socialmente.
Lembro uma ocasião em que, como presidente substituto da Capes,
coordenei uma reunião com representantes dos Ministérios da Educação, de
Ciência e Tecnologia e do Desenvolvimento, para debater incentivos a fim de que
pesquisadores fizessem maior interface com o "setor produtivo". Numa
certa altura, observei que o edital falava em ganhos sociais mas, quando se
chegava à hora de dar pontos aos projetos concorrentes, o item social sumia! Um
dos representantes do MCT então me disse, com ênfase: "Mas esses ganhos
sociais são apenas uma crença! Não há nada seguro quanto a eles. São apenas
questão de fé!"
Fiquei pasmo, porque eu tinha e tenho a mesma impressão, só que quanto
aos ganhos econômicos. Desde 1993, quando me tornei membro do Conselho
Deliberativo do CNPq, vejo os governos destinando dinheiro para ver se as
empresas investem em pesquisa. To no avail, ou traduzindo: sem resultado, ou
com frutos bem modestos. E como um governo, ainda mais do PT, deixa os ganhos
sociais ficarem só no enunciado e sumirem da pontuação, que é realmente o aspecto
decisivo na atribuição dos recursos?
Vejo isso de novo nos projetos, ainda que muito bons, que as IES
federais da Grande São Paulo desenvolvem. Sustentabilidade está sendo
considerada como questão que se refere somente à natureza. Mas quem ganha, quem
perde com isso? Engenharia é tratada como se a diferenciada apropriação dos
ganhos em produtividade fosse neutra.
Sinto uma certa decepção com isso. Faz tempo, escrevi que não se pode
confundir "sociedade" com "empresa" (em A universidade e a
vida atual, Ed. Elsevier/Campus). A relação da universidade se deve dar com as
duas. Nada contra a empresa, tudo com ela, sempre que possível, mas – sobretudo
– tudo pela sociedade, que é quem nos paga, quem nos criou, em suma, que é
nossa razão de ser. E no entanto ouço, até com freqüência, quando se fala em
aumentar a produção ou a produtividade, falar-se em "cidadãos" ou
"sociedade civil" quando o que se quer dizer é "capital" ou
"empresas".
Sei que as intenções são muito boas. Mas não é estranho que a UFABC
tenha sido criada numa região do País em que nasceram a indústria moderna, o
sindicalismo autônomo e um partido diferente dos outros – e que esses não sejam
temas de seus estudos? Estão surgindo novas relações de trabalho no ABC, que
nada têm a ver com a flexibilização prezada pela direita. São empresas falidas,
salvas por seus credores (os próprios trabalhadores) que criam cooperativas,
eficazes. Quem estuda isso?
Não é estranho que, quando se fala em tecnologia e mesmo em inovação (no
tripé Ciência, Tecnologia e Inovação), as ciências humanas não sejam chamadas a
opinar? Não é estranho que se acredite que, aumentando-se a riqueza,
automaticamente os resultados serão bons? Ora, qualquer historiador sabe que
não é assim, e que as expansões econômicas acarretam redistribuições, por vezes
enormes, dos recursos novos que surgem. Ou seja, nada que é social é
politicamente neutro.
Não creio que devamos desanimar. Aziz AbSaber, presidente de honra e
ex-presidente da SBPC, disse numa reunião anual em Salvador (e lembrem que ele
é geógrafo físico) que toda questão de tecnologia é assunto das ciências
humanas – porque diz respeito ao modo como o conhecimento científico repercute
na sociedade. Concordo com ele.
Por isso mesmo, é preciso cobrar essa atitude dos nossos amigos das
ciências biológicas e exatas, ou das engenharias. Se eles não se convenceram
ainda disso, obviamente não é por má vontade. Os que conheço acreditam num
Brasil mais justo, melhor, sem miséria, sustentável. O que precisam é saber que
as ciências humanas e sociais não são assunto de mera opinião. São ciências,
que trazem um conhecimento que as ciências deles não têm. Esse conhecimento diz
respeito à justiça, à justiça social, aos modos de promovê-las e de evitar que
a desigualdade destrua o tecido social. E, sem esse conhecimento, o que as
ciências nossas irmãs trarão de positivo ao Brasil ficará aquém, e por vezes
bastante aquém, do que poderiam trazer se procurassem quem pode andar junto com
elas nessa tarefa.
Renato Janine Ribeiro, professor
titular de Ética e Filosofia Política na USP, ex-secretário e ex-conselheiro da
SBPC, foi também diretor de Avaliação da Capes de 2004 a 2008
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