terça-feira, 30 de agosto de 2011

Venezuela: um país mudando o eixo

Por Alexandre Haubrich, especial para o Correio da Cidadania

Em um pequeno mercado de um bairro na região oeste da cidade, não se pode comprar duas caixas de leite. Uma caixa por pessoa é o limite determinado pela senhora que atende atrás do balcão gradeado. O motivo comentado pelas ruas: mais um boicote das distribuidoras de alimento ao tabelamento dos preços da cesta básica. O racionamento informal não é novidade na Venezuela. O enfrentamento entre o governo do presidente Hugo Chávez e setores do empresariado ligados à oposição é intermitente, e perpassa toda a sociedade venezuelana nas grandes e nas pequenas ações.

Os boicotes da oposição são uma realidade na Venezuela. Havia o boicote ao processo eleitoral, que terminou no ano passado com a participação nas eleições de deputados. Mas seguem se repetindo casos de boicote alimentar. O sufocamento e a queda de popularidade do presidente são os objetivos. A resposta do governo vem na forma de incentivos morais – e institucionais – às tomadas de fábricas pelos trabalhadores e à criação de cooperativas que produzam e distribuam alimentos. Nas estações de metrô que ligam uma ponta da cidade à outra, painéis destacam o aumento de produtividade nas indústrias ocupadas pelos trabalhadores e mostram operários felizes com seu trabalho. Todos os painéis, como muitas outras coisas em Caracas, carregam um slogan como uma marca do sucesso da revolução: “Hecho en socialismo”.

Caracas está profundamente dividida. Não há meio termo: ou se está com o processo revolucionário ou se está contra ele. Em cada um desses grandes grupos existem variações de comprometimento e ideário, mas ninguém está indiferente às mudanças ocorridas na Venezuela desde que o Comandante Hugo Chávez venceu sua primeira eleição, em 1998. Na verdade, o processo já iniciara antes, com o Caracazo de 1989 – uma rebelião popular contra o governo de Carlos Andrés Pérez – e a tentativa de Chávez de tomar o poder pelas armas em 1992. Mas o avanço institucional da revolução bolivariana teve como impulso a chegada do Comandante à presidência e a divisão política que tomou conta do país a partir daí.

Na capital, o chavismo se espraia pela região central e pelo oeste da cidade. A leste, redutos de anti-chavismo, de defesa do neoliberalismo e até de certa indiferença política. Porém, sempre com o ódio por Chávez à flor da pele. Não é desgosto, não é indiferença. As elites venezuelanas nutrem verdadeiro ódio pelo líder idolatrado pelo povo. Povo este que não deixa por menos, e devolve o ódio das elites com ódio às elites. E com ainda mais respeito por Chávez.

O aniversário do presidente, comemorado no dia 28 de julho, foi momento de grande comoção popular em Caracas. Em frente ao Palácio Miraflores, a sede do governo federal, milhares de pessoas se aglomeraram para ouvir Chávez falar. Na Praça Bolívar, centro político da cidade, outras milhares participaram das comemorações cantando, dançando e ouvindo poesias e discursos. Pessoas de todas as idades, vestidas com as cores da Venezuela ou com o vermelho revolucionário. Nem a chuva e o calor que se alternaram durante todo o dia fizeram o povo se recolher. O gigante que esse povo tem vencido dia-a-dia é muito maior do que o clima instável.

Foram espalhados pela Praça Bolívar alguns painéis para que fossem deixados recados de aniversário ao presidente. Mas o povo segue sua própria ordem, sua própria lógica, e os desejos de saúde e muitos anos de vida se direcionaram menos ao aniversário de Chávez do que à doença que o líder enfrenta. Sobre o câncer muito se fala e pouco se diz efetivamente. A oposição já oscilou entre acusar Chávez de inventar a doença e defender a idéia de que ele não terá condições de saúde para seguir no poder. O governo, por sua vez, divulgou que Chávez estava saudável quando já sabia da doença. Nenhuma informação sobre o assunto é confiável, de lado a lado. Nenhuma informação sobre qualquer assunto repassada pela oposição é confiável.

O discurso anti-chavista ganha forte eco nos meios de comunicação privados. Globovisión e Venevisión lideram os ataques desde que a concessão da RCTV venceu e não foi renovada, em 2007. Não há a falsa neutralidade que caracteriza parte da mídia brasileira. A mídia privada venezuelana é abertamente contra o governo, assim como a mídia estatal é abertamente a favor. Há ainda um crescimento importante da chamada “mídia alternativa, comunitária e independente”. Em dez anos, o número de rádios comunitárias saltou de zero para quatrocentas, e o número de emissoras de TV comunitárias foi de zero para cinqüenta. O governo apóia esses veículos, que por sua vez apóiam o governo – mas de forma extremamente crítica. O apoio é ao “processo”, não necessariamente a Chávez.

A mídia comunitária é construída pelo povo, mas a participação popular não se esgota aí. Os Conselhos Comunais são um mecanismo importante de inclusão das comunidades no processo decisório e o interesse é efetivo. Há dificuldades, há uma burocracia corrupta no meio do caminho entre o poder popular e o governo, mas as pontes vão sendo construídas – e derrubadas – na dinâmica do processo.

Parte importante dessa dinâmica são as diversas organizações sociais espalhadas pela Venezuela, incluindo um grande número de coletivos operando em Caracas. Tais coletivos levam variadas oficinas às comunidades, de forma que possuem papel importante na formação política dos venezuelanos. São oficinas culturais, que vão desde a operação de rádios comunitárias até o hip hop e o circo, sempre de forma politizada e politizante, sempre com um fundo político fundamental. Os coletivos são, de modo geral, independentes do governo, mas muitos trabalham ombro a ombro com a parte institucional da revolução. Os muros grafitados estão por toda Caracas lembrando à população sua própria história e a luta atual, com referências a Bolívar, Sucre, Miranda, Che Guevara, Fidel Castro e Hugo Chávez.

Com as oficinas, a mídia alternativa e os muros, a política está por todos os lados. A polarização não deixa espaço para meios termos ou para a indiferença. Às vezes Chávez segue o povo, às vezes o povo segue Chávez. Liderança e liderados, lideranças e liderado, difícil determinar até que ponto as ordens vêm de baixo, até que ponto vêm de cima. Fato é que, nos últimos anos, a Venezuela se reinventou. Nas praças, discute-se o rumo do país, o petróleo e a revolução. “Há dez anos éramos todos ignorantes” é uma frase que se ouve facilmente, sempre complementada com o olhar sonhador da mudança em processo: “hoje sabemos quem somos e pra onde queremos ir”.


Alexandre Haubrich é jornalista e editor do Jornalismo B

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