As referências beat nortearam minha formação literária de
maneira mais intensa e duradoura do que as da contracultura hippie, sua
herdeira imediata, que encantava boa parte da juventude da época. Éramos
demasiados boêmios, iconoclastas, agressivos e pessimistas para as utopias do
pacifismo cabeludo, e por isso, instintivamente, preferíamos nortear nossos
devaneios experimentalistas e libertários pelas figuras quase místicas de Jack
Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs. E Bob Dylan, sempre.
O legado do universo beat é inestimável. Os repertórios
musicais, visuais, literários e até mesmo filosóficos da chamada
pós-modernidade possuem ramificações que levam diretamente àquele espírito. Se
não podemos simplificá-lo em fórmulas estéticas homogeneizantes, porém, é um
erro grotesco negar sua influência a partir do repúdio ao individualismo (como
faz a esquerda mais bitolada) ou desses purismos formais que a crítica
conservadora usa para se proteger das incertezas cotidianas.
Não era pequena, portanto, a responsabilidade que Walter
Salles assumiu ao transpor a notória saga de Kerouac. E o diretor soube
resolver dignamente quase todos os desafios inevitáveis do projeto. Muniu-se de
um elenco inspirado, apesar da juventude e da complexidade dos papéis, com
destaque para Garrett Hedlund (Dean Moriarty/Neal Cassady), Tom Sturridge (Carlo
Marx/Ginsberg), Viggo Mortensen (Old Bull Lee/Burroughs) e Elisabeth Moss
(Galatea Dunkel/Helen Hinkle). A fotografia de Eric Gautier explora bem as
paisagens inóspitas e se movimenta com desenvoltura nos interiores dos
veículos, tão difíceis de filmar. A direção de arte é excelente e a trilha
sonora de Gustavo Santaolalla harmoniza-se com o privilegiado fundo musical da
época.
Há problemas na adaptação. O roteirista Jose Rivera optou
por uma estrutura demasiado convencional, mais preocupada em esmiuçar a
cronologia dos relatos (mantendo fidelidade à biografia dos envolvidos) do que
em reproduzir o turbilhão episódico da narrativa original. Esse tratamento
intermediário prejudica a identificação do espectador com os personagens e
arrasta o desenvolvimento da trama, impondo-lhe uma falsa divisão de atos e
anunciando conflitos e rupturas que não se realizam. Trata-se de uma
expectativa desnecessária, pois Salles costuma utilizar um tempo narrativo
muito característico, dado à contemplação e às pausas reflexivas, realçadas
aqui (e em diversos momentos de sua obra) na clara homenagem a Wim Wenders,
outro apaixonado pelos relatos de viagem.
É um trabalho bonito, provocativo, relevante sob diversos
aspectos. Maior audácia formal e menos reverência histórica o transformariam no
filmaço que o tema exigia. Mas talvez fosse muita transgressão para os padrões
e costumes hollywoodianos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário