terça-feira, 24 de julho de 2012

Cinema: On The Road





As referências beat nortearam minha formação literária de maneira mais intensa e duradoura do que as da contracultura hippie, sua herdeira imediata, que encantava boa parte da juventude da época. Éramos demasiados boêmios, iconoclastas, agressivos e pessimistas para as utopias do pacifismo cabeludo, e por isso, instintivamente, preferíamos nortear nossos devaneios experimentalistas e libertários pelas figuras quase místicas de Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs. E Bob Dylan, sempre.

O legado do universo beat é inestimável. Os repertórios musicais, visuais, literários e até mesmo filosóficos da chamada pós-modernidade possuem ramificações que levam diretamente àquele espírito. Se não podemos simplificá-lo em fórmulas estéticas homogeneizantes, porém, é um erro grotesco negar sua influência a partir do repúdio ao individualismo (como faz a esquerda mais bitolada) ou desses purismos formais que a crítica conservadora usa para se proteger das incertezas cotidianas.

Não era pequena, portanto, a responsabilidade que Walter Salles assumiu ao transpor a notória saga de Kerouac. E o diretor soube resolver dignamente quase todos os desafios inevitáveis do projeto. Muniu-se de um elenco inspirado, apesar da juventude e da complexidade dos papéis, com destaque para Garrett Hedlund (Dean Moriarty/Neal Cassady), Tom Sturridge (Carlo Marx/Ginsberg), Viggo Mortensen (Old Bull Lee/Burroughs) e Elisabeth Moss (Galatea Dunkel/Helen Hinkle). A fotografia de Eric Gautier explora bem as paisagens inóspitas e se movimenta com desenvoltura nos interiores dos veículos, tão difíceis de filmar. A direção de arte é excelente e a trilha sonora de Gustavo Santaolalla harmoniza-se com o privilegiado fundo musical da época.

Há problemas na adaptação. O roteirista Jose Rivera optou por uma estrutura demasiado convencional, mais preocupada em esmiuçar a cronologia dos relatos (mantendo fidelidade à biografia dos envolvidos) do que em reproduzir o turbilhão episódico da narrativa original. Esse tratamento intermediário prejudica a identificação do espectador com os personagens e arrasta o desenvolvimento da trama, impondo-lhe uma falsa divisão de atos e anunciando conflitos e rupturas que não se realizam. Trata-se de uma expectativa desnecessária, pois Salles costuma utilizar um tempo narrativo muito característico, dado à contemplação e às pausas reflexivas, realçadas aqui (e em diversos momentos de sua obra) na clara homenagem a Wim Wenders, outro apaixonado pelos relatos de viagem.

É um trabalho bonito, provocativo, relevante sob diversos aspectos. Maior audácia formal e menos reverência histórica o transformariam no filmaço que o tema exigia. Mas talvez fosse muita transgressão para os padrões e costumes hollywoodianos.

Nenhum comentário: