Via Esquerda.Net de Portugal
Robert Fisk andou em cima de um tanque no Cairo e descreve cenas que fazem lembrar o 25 de Abril. Mas adverte: a “libertação” do Cairo ainda tem que andar, até à consumação. A tragédia ainda não acabou.
Os tanques egípcios, os manifestantes em delírio sentados sobre eles, as bandeiras, os 40 mil manifestantes lacrimejando e gritando vivas na Praça da Liberdade e rezando à volta dos tanques, um membro da Fraternidade Muçulmana sentado entre os ocupantes do tanque. Pode-se talvez comparar à libertação de Bucareste? Subi eu também sobre um tanque de combate, e só conseguia pensar naqueles maravilhosos filmes da libertação de Paris. A apenas algumas centenas de metros dali, os guardas da segurança de Mubarak, de uniformes pretos, ainda disparavam contra manifestantes perto do ministério do Interior. Foi uma celebração selvagem de vitória histórica, os tanques de Mubarak libertando a capital de sua própria ditadura.
No mundo de pantomima de Mubarak – e de Barack Obama e Hillary Clinton em Washington –, o homem que ainda se diz presidente do Egipto deu posse a um vice-presidente cuja escolha não poderia ter sido pior, na tentativa de aplacar a fúria dos manifestantes – Omar Suleiman, chefe-negociador do Egipto com Israel e principal agente da inteligência egípcia, 75 anos de idade e muitos de contactos com Telavive e Jerusalém, além de quatro ataques cardíacos. Não se sabe de que modo esse velho apparatchik doente conseguiria enfrentar a fúria e a alegria de 80 milhões de egípcios que se vão livrando de Mubarak. Quando falei a alguns manifestantes ao meu lado, em cima do tanque, da nomeação e posse de Suleiman, houve gargalhadas.
Os soldados que conduzem os tanques, em uniforme de combate, sorridentes e às vezes aplaudindo os passantes, não fizeram qualquer esforço para apagar das laterais dos tanques os graffiti ali pintados com tinta spray. “Fora Mubarak! Vai-te embora, Mubarak!” e “Mubarak, o teu governo acabou” aparecem grafitados em praticamente todos os tanques que se vêem pelas ruas do Cairo. Sobre um dos tanques que circulavam pela Praça da Liberdade, vi um alto dirigente da Fraternidade Muçulmana, Mohamed Beltagi. Antes, andei ao lado de um comboio de tanques próximo de Garden City, subúrbio do Cairo, onde as multidões subiram aos tanques para oferecer laranjas aos soldados, aplaudindo-os como patriotas egípcios. A nomeação ensandecida e sem sentido de um vice-presidente [o primeiro, em 30 anos, e nomeação que significa que Mubarak desistiu de nomear o filho para substituí-lo no poder (NTs)] e a formação de um “novo” Gabinete sem poder algum, constituído só de velhos conhecidos dos egípcios, evidenciam que as ruas do Cairo viram e vêem o que nem os estrategistas e políticos dos EUA e da União Europeia souberam ver: que o tempo de Mubarak acabou.
As frágeis ameaças de Mubarak de que empregará repressão violenta em nome do bem-estar dos egípcios – quando já se sabe que a sua própria polícia e as suas milícias são responsáveis pelos ataques mais violentos dos últimos cinco dias – só geraram ainda mais fúria entre os manifestantes, vítimas de 30 anos de ditadura várias vezes muito violenta. Crescem as suspeitas de que os piores ataques da repressão foram executados por milícias não uniformizadas – inclusive o assassinato de 11 homens numa vila do interior do país nas últimas 24 horas –, tentativa de dividir o movimento e criar suspeitas contra as intenções democratizantes das manifestações contra o governo de Mubarak. A destruição dos centros de comunicações por grupos de homens mascarados – que se suspeita que tenha sido ordenada por alguma agência da segurança de Mubarak – também parece ter sido obra das milícias não uniformizadas que espancaram manifestantes.
Mas o incêndio de postos policiais no Cairo, Alexandria, Suez e outras cidades não foram obra daquelas milícias. No final da sexta-feira, a 40 milhas do Cairo, na estrada para Alexandria, havia grandes grupos de jovens em torno de fogueiras acesas no meio da estrada e, quando os carros paravam, eram assaltados; os assaltantes exigiam dólares, sempre muitos, em dinheiro. Ontem pela manhã, homens armados roubavam carros, de dentro dos quais arrancavam motoristas e passageiros, no centro do Cairo.
Infinitamente mais terrível foi o vandalismo contra o Museu Nacional do Egipto. Depois que a polícia abandonou o serviço de segurança do museu, houve invasão de saqueadores e vândalos, que roubaram ou destruíram peças de 4 mil anos, múmias e peças de madeira esculpida de valor inestimável – barcos, esculpidos com todos os detalhes e a tripulação, miniaturas magníficas, feitas para acompanhar os faraós na viagem pós-morte. Montras que protegiam trajes milenares foram quebradas, os guardas pintados de preto arrancados e depredados. Outra vez, é preciso registar que há boatos de que os próprios polícias destruíram o museu, antes de fugir na sexta-feira à noite. Lembrança fantasmagórica do museu de Bagdade em 2003. Bagdade foi pior, a destruição foi mais total, mas mesmo assim foi terrível o desastre do museu do Cairo.
Em minha jornada nocturna da Cidade 6 de Outubro até a capital, tive de diminuir a velocidade várias vezes, porque a estrada está cheia de restos de veículos queimados. Havia destroços e vidros partidos pela estrada, e muitos polícias armados, com espingardas apontadas para os faróis do meu carro. Vi um jipe semi-destruído. Os restos do equipamento da polícia antitumulto que os manifestantes expulsaram da cidade do Cairo na sexta-feira. Os mesmos manifestantes que, ontem à noite, formavam círculo gigantesco em torno da Praça da Liberdade para rezar. Gritos de “Allah Alakbar” trovejavam pela cidade no ar da noite.
Há também quem clame por vingança. Uma equipa de jornalistas da rede al-Jazira encontrou 23 cadáveres em Alexandria, aparentemente assassinados pela polícia. Vários tinham os rostos horrivelmente mutilados. Outros onze cadáveres foram encontrados no Cairo, cercados por parentes que gritavam por vingança contra a polícia.
No momento, o Cairo salta em minutos da alegria para a mais terrível fúria. Ontem pela manhã, andei pela ponte do rio Nilo e vi as ruínas do prédio de 15 andares onde funcionava a sede do partido de Mubarak, que foi incendiado. À frente, um imenso cartaz pregava os benefícios que o partido trouxe ao Egipto – imagens de estudantes formados bem sucedidos, médicos e pleno emprego, promessas que o governo de Mubarak sempre repetiu e jamais cumpriu em 30 anos – emoldurados pela fuligem, semi-queimados, pendentes das janelas enegrecidas do prédio. Milhares de egípcios andavam pela ponte e pelos acessos laterais para fotografar o prédio ainda fumegante – e muitos saqueadores, a maioria velhos, que tiravam de lá mesas e cadeiras.
No instante em que uma equipe de televisão escocesa se preparava para filmar as mesmas cenas, foi cercada por várias pessoas que disseram que não tinham o direito de filmar os incêndios, que os egípcios são povo orgulhoso que não roubaria nem saquearia. O assunto foi discutido várias vezes ao longo do dia: se a imprensa teria ou não o direito de divulgar imagens sobre essa “libertação”, que veiculassem ideias menos dignas do movimento. Mesmo assim, os manifestantes mantinham-se cordiais e – apesar das declarações acovardadas de Obama, na sexta-feira à noite – não se viu nenhum, nem qualquer mínimo sinal de hostilidade contra os EUA. “Tudo o que queremos, tudo, exclusivamente, é que Mubarak vá-se daqui, que haja eleições, que nos devolvam a liberdade e a honra” – disse-me uma psiquiatra de 30 anos. Por trás dela, multidões de jovens limpavam o leito da rua, removendo restos de veículos e barreiras postas nas intersecções e esquinas – releitura irónica do conhecido ditado egípcio, de que os egípcios nunca varrerão as próprias ruas.
A alegação de Mubarak, de que as actuais manifestações e actos de delinquência – a combinação foi tema do discurso em que Mubarak declarou que não deixaria o Egipto – seriam parte de um “plano sinistro” é evidentemente o núcleo de seu argumento, na tentativa de não perder o reconhecimento mundial.
De facto, a própria resposta de Obama – sobre a necessidade de reformas e o fim da violência – foi cópia exacta de todas as mentiras que Mubarak sempre usou para defender o seu governo durante 30 anos. Os egípcios riram de Obama – inclusive no Cairo, depois de eleito – quando exigiu que os árabes abraçassem a liberdade e a democracia. Mas até essas aspirações sumiram completamente quando, na sexta-feira, Obama assegurou o seu desconfortável e incomodado apoio ao presidente egípcio. O problema é o de sempre: as linhas do poder e as linhas da moralidade em Washington jamais convergem quando os presidentes dos EUA têm de lidar com o Médio Oriente. A liderança moral dos EUA cessa de existir quando há confronto declarado entre o mundo árabe e Israel.
E o exército egípcio, desnecessário lembrar, é parte da equação. Recebe de Washington mais de 1.300 milhões de dólares de auxílio anual. O comandante desse exército, general Tantawi – que casualmente estava em Washington, quando a polícia tentava esmagar os manifestantes – sempre foi muito amigo, pessoal, íntimo, de Mubarak. Não é bom sinal, parece, pelo menos no futuro imediato.
Assim, a “libertação” do Cairo – onde houve notícias, ontem à noite, de saques no hospital Qasr al-Aini – ainda tem que andar, até à consumação. O fim pode ser claro. A tragédia ainda não acabou.
Robert Fisk é o correspondente estrangeiro britânico mais premiado. Ele recebeu o Prêmio Correspondente Internacional Britânico do Ano sete vezes (as últimas em 1995 e 1996). Também ganhou o Prêmio à Imprensa da Anistia Internacional no Reino Unido em 1998 e 2000. É considerado um dos maiores especialistas nos conflitos do Oriente Médio. Atualmente trabalha para o The Independent de Londres.
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