Por Milton Temer, escrito para a Fundação Lauro Campos
É impressionante o esforço da mídia conservadora brasileira para transformar o ataque às Torres Gêmeas de Nova Iorque num fator de absolvição do governo Bush por todas as barbaridades bélicas promovidas na esteira do episódio. Mas o inegável é que nenhuma investigação se concluiu de forma convincente sobre as facilidades que tiveram os ditos terroristas sauditas, ligados a Bin Laden, para operarem o ataque. O que deixa espaços imensos para que se lance sobre a quadrilha que ocupava o governo americano – Cheney, Rumsfield, Karl Rove e até o boneco de ventríloquo Bush – uma fundada suspeição sobre sua participação no caso. Afinal, todos eram executivos e fortes acionistas de empresas ligadas ao comércio da segurança privada, ou ao complexo industrial-militar-petroleiro, que potenciou geometricamente seus lucros, a partir da ocupação do Iraque.
Mas se este 11 de setembro é coberto de áreas cinzentas quanto aos verdadeiros interessados e autores, um outro nunca deixou dúvidas sobre seus atores principais – o de 1973, data do golpe contra o governo democrático e revolucionário do socialista Salvador Allende, no Chile –. E não por acaso a mídia conservadora brasileira faz silêncio sobre ele. Porque, se não foi cúmplice direta, deu toda cobertura e apoio ao que se registrava como "fim da ameaça bolchevique previsível com o governo de Allende", saudando a nova ordem do pinochetista, e ocultando a participação até da embaixada brasileira na empreitada que deixou rastro indelével de torturas e assassinatos.
Allende volta à pauta por outros caminhos bem mais louváveis do que os deixados pelas lembranças dos tempos do auge da "guerra ao terror" nos Estados Unidos. Volta nas palavras-de-ordem das manifestações gigantescas que retornam às ruas de Santiago e das principais cidades do Chile. Manifestações mobilizadas contra as políticas neoliberais ainda mantidas pelo governo do pinochetista Piñera (o irmão dele foi um dos principais ministros da área econômica do general criminoso), depois de dois mandatos entorpecidos de uma "concertación" de socialdemocratas e democratas-cristãos tão moderados quanto o governo atual. Com eles já estão os sindicatos de trabalhadores em greve, todos reprimidos de forma violenta, todos liderados por uma jovem militante dos quadros do Partido Comunista Chileno. Tudo sem que a mídia conservadora, sempre atenta para as mais insípidas manifestações de opositores em Caracas ou Havana, se preocupe em cobrir.
Os mortos dos dois 11 de setembro são razão de sofrimento nas merecidas homenagens. Mas por razões distintas. Os que foram sacrificados nas Torres Gêmeas eram pessoas inocentes e alienadas em relação ao que lhes viria a ocorrer. Os do Chile, absolutamente não. Eram militantes políticos, ligados a partidos revolucionários e racionalmente assassinados pelo terrorismo do próprio Estado que pretendiam transformar. Que pretendiam transformar num processo pela via eleitoral, sendo submetidos ao golpe militar criminoso exatamente porque os resultados eleitorais vinham mostrando uma curva ascendente das forças progressistas desde a eleição de Allende; com todos os sacrifícios, com todos os obstáculos organizados e financiados pelo Departamento de Estado sob batuta de Henry Kissinger, e cobertura política do que – contrariamente a Allende, herói – sairia depois, varrido, da Casa Branca.
Para a esquerda brasileira, a experiência de Allende é extraordinariamente rica. Numa quadra histórica em que se torna absolutamente inviável a ideia de que processos insurrecionais produzam governos socialistas. Seattle, Argentina do "se vayan todos", as grandes manifestações contra governos conservadores e suas políticas neoliberais nos últimos anos, na França, na Grécia, na Inglaterra, na Itália, as recentes revoltas civis no norte da África; são todos exemplos de que, sem poderes institucionais em mãos, os processos "no resultan", para usar uma expressão bem chilena.
Ou seja; o processo revolucionário no contexto atual, e principalmente num País com as dimensões continentais e diversidades de problemas regionais – quase representando nações distintas a despeito do mesmo idioma –, ganha dimensões extremamente complexas. Fica evidente que, para além da pressão dos movimentos sociais – segmentadas ou regionalizadas -, é fundamental disputar poder dentro do aparelho do Estado. É fundamental participar com intensidade e credibilidade das disputas institucionais. É fundamental recordar o processo chileno que levou Salvador Allende à Presidência do Chile, na liderança de uma Unidade Popular composta por comunistas, socialistas e democratas progressistas.
Ah...mas de nada adianta o poder pela via eleitoral, pois as esquerdas não têm forças para mantê-lo. A direita se articula, golpeia e o que vem depois é sempre uma ditadura de direita.
Falso, no contexto atual, podemos afirmar.
Evidentemente, a tentação para o pragmatismo assistencialista se apresenta, sob tal argumento auto-limitador. Lula e Dilma estão aí para confirmar. Mas, no contraponto, estão aí os exemplos de Venezuela, Equador e Bolívia, onde os eleitos não se renderam antes da hora. Foram para o confronto, na lei, contra os que gritam por democracia, mas não hesitam em entrar pela linha do golpe implantador de autoritarismo quando vêem seus privilégios questionados. Porque é também inevitável que as classes dominantes não reconhecem resultados eleitorais que se dêem fora de seus paradigmas, com a substituição de um seis por meia-dúzia entre candidatos de seu próprio campo.
A diferença, com o que pretendem os que só acreditam "nas ruas", é que o confronto nestes termos, com o aparelho do Estado em relativo controle, e com a legitimidade da vitória nas urnas num período histórico em que não existe espaço para quarteladas, tendo em vista o "apreço" ao regime democrático-liberal que justifica toda a ação imperialista no mundo, torna-se bem mais favorável do que o foi nos anos 70, em que a Guerra Fria justificava intervenções de todo tipo.
É por aí portanto que devemos navegar. Nas ruas e nas urnas. Um caminho em linha convergente com o outro, até que se unifiquem num só sentido. No sentido das grande alamedas que Salvador Allende, em seu último discurso, em pleno combate, não esqueceu de citar como espaço natural de ocupação pelas grandes massas.
Milton Temer é jornalista
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